21 dezembro 2006

Amnésia virtual - 2

Achou aquilo muito estranho e quando ia buscar os Dvds com cópias de imagens de 2009 a 2011, viu o holograma seu irmão tremulando em má sintonia na sala, perguntando-lhe sobre fotos digitalizadas. Descobriu então que o problema era maior ao acessar a hipertela onde a notícia já circulava mundo a fora. Todas as imagens haviam sido dissolvidas devido ao baixo teor de ozônio da atmosfera coincidente com uma tempestade radioativa que se abatia do sol em direção aos planetas. Nada que afetasse fotos obtidas nos arcaicos filmes, mas que simplesmente reduziram a cinzas imagens digitais, impressas ou não. Daquelas registradas em papel, em jato de tinta ou laser, sem o uso do fixador, simplesmente descascaram ou desbotaram até virar um papel velho, enrugado e inútil. Nos álbuns eletrônicos, armazenados em nano arquivos, mesmo digitalizados em hipergigamegabites, o que se via era apenas a marca do fabricante desbotada e oscilante na tela.

19 dezembro 2006

Amnésia virtual - 1

foto daqui

Ao abrir o arquivo digital de seu álbum eletrônico, não havia mais uma foto sequer. A princípio achou que fosse uma pane, nada mais que o velho control+alt+del não resolvesse. Lembrou que no notebook aposentado que estava no sótão havia boa parte das fotos que tirara entre 2003 e 2008. Foi até lá, revirou algumas caixas e lá estava a velha máquina ainda de tela de plasma, antiquada e sem 3D. As baterias ainda poderiam ser carregadas e pôs-se a resolver seu problema. Abriu o arcaico Windows Vista e lá estavam seus textos, planilhas..., mas nada de imagens.

12 dezembro 2006

Parapeito - X

A medida que a escada se movimentava com a subida de alguém, ela esperava que fosse um bombeiro de rosto rude e corpulento. Contra o néon do Motel Amor Clandestino surgiu a cabeça de alguém que ficava com o rosto escondido pela luz que o iluminava por trás. O luminoso, como se colocado ali de propósito, estava parcialmente oculto deixando ler apenas "amor", seguido pela figura oculta e pela palavra dividida "...destino". Marieta jurava que ouvia uma música vindo de seu apartamento naquelas frações de segundo que precediam o resto de sua vida. Ele largou sobre a marquise uma câmera fotográfica com zoom, a que logo Marieta identificou como sendo a luneta que vira já há algumas vezes. Ele perguntou se ela estava bem ao que ela escutou em sua voz máscula e segura que queria saber como ela estava, que se preocupava com ela, que ela não se importaria de ouvir no resto das manhãs que viriam, e ela respondeu um lacônico sim. Ele falou que percebeu o que havia acontecido. Sim, ele se importava com ela. Ela tentou falar de um acidente, enquanto escondia seu binóculo às costas. Ele estendeu-lhe a mão e ela já voava com ele, feito um filme antigo de super-homem. Ela levantou-se, ajeitou como pode o seu hobby e mostrou a janela trancada, talvez você queira entrar comigo e deitar-se em minha cama... Ele chegou junto a janela, espalmou a mão enorme no vidro e o ergueu até poder colocar a outra pela fresta e terminar de levantá-lo. Não, ela não queria mais sair dali, queria ficar mais tempo com ele, abraçá-lo, quem sabe fazer algumas fotos com sua câmera enorme. Ele entrou no apartamento e ajudou-a a subir. Falou-lhe de que a conheceu fotografando o pôr de sol e os pássaros urbanos. Ela quis calar sua boca com um beijo e ele falou de tê-la visto várias vezes e se aproximou dela. Marieta já precisou imaginar mais nada.

04 dezembro 2006

Parapeito - IX

Imagem

nota sobre os estereogramas:
Estereogramas são imagens que ocultam um efeito de 3D. Para visualizá-las, clique na figura para abri-la em tamanho maior, depois aproxime-se à tela, procurando seu próprio reflexo. Permaneça assim por alguns instantes até que uma imagem tridimencional comece a se formar. Associei essas imagens à personagem, que busca outra dimensão de suas fantasias na sua incessante procura pelo desejo.


Nos primeiros minutos, ela apenas pensava em chorar, ao dar-se conta de que era impossível ser expectadora na vida. O movimento no motel continuava e sua preocupação, agora, não era procurar ver e, sim, não ser vista. Depois de algum tempo, percebeu que não haveria como não ser notada pela luneta que vinha lhe observando há algum tempo. Procurou-a atrás da luz do poste que lhe ofuscava as vistas, mas nada pôde fazer. Quando já estava cansada de suas conclusões filosóficas, levantou-se e tentou abrir a janela, sem sucesso. Voltou a sentar junto à parede de sua janela e ficou imaginando a si mesma vista da janela da luneta. Primeiro ligou o som e começou a dançar languidamente. Começou por mostar o ombro e foi deslizando o hobby rosa pelo braço, segurando na altura do peito para dar mais emoção ao momento. Virou-se de costas, balançou a cintura, desceu todo o seu traje, deixando as costas de fora, virando a cabeço para mostrar seu rosto de prazer. Depois soltou a faixa da cintura e ficou segurando seu hobby aberto na frente, que estava direto para a parede deixando-o suspendo pelas mãos que o retinham na altura do quadril. Naquelas alturas, já tinha um enorme poá de rosa vivo e cintilante no pescoço, que ao deixar cair seu traje, cobriu-lhe os seios e seu sexo. Girou então suavemente fazendo o poá balançar ao vento deixando seu corpo à mostra por breves instantes. A música foi terminando e ela viu-se sentada no mesmo lugar de hobby entreaberto, quando uma escada apontou na marquise.

26 novembro 2006

Parapeito - VIII

nota sobre os estereogramas:

Estereogramas são imagens que ocultam um efeito de 3D. Para visualizá-las, clique na figura para abri-la em tamanho maior, depois aproxime-se à tela, procurando seu próprio reflexo. Permaneça assim por alguns instantes até que uma imagem tridimencional comece a se formar. Associei essas imagens à personagem, que busca outra dimensão de suas fantasias na sua incessante procura pelo desejo.


A fronteira entre a fantasia e o desequilíbrio mostrou-se real para Marieta naquele instante. Ao tentar resgatar seu binóculo que fora parar logo abaixo do parapeito de sua janela, na marquise do prédio, viu que estava sendo observada pela luneta no prédio quase em frente. Seu corpo oscilou para frente fazendo-a levantar suas pernas e deslizar para fora. Embora tivesse sido um movimento lento, houve tempo suficiente para seu roupão de cetim resvalar pelo seu corpo, deixando suas nádegas e metade das costas à mostra. O hobby, feito cortina, desceu pelo seu corpo encobrindo-lhe parcialmente o rosto, porém mantendo-se preso à cintura. Naquela posição desconfortável, apoiada com as mãos no piso, ao lado do binóculo que naquele momento parecia observar-lhe, não teve outra alternativa senão descer o resto do corpo, engatinhando pesadamente. Lá embaixo, ouvia a voz de Marialva e Adelaide, que iniciavam sua caminhada buscando a vã ilusão de manter-se em forma para o verão. Num instante, elas cruzaram a rua, em frente ao motel e de olhos espichados para dentro, nem perceberam o volume humano que já descia a segunda perna para safar-se da posição inusitada. Marieta nem havia se recomposto da queda, quando ouviu a persiana de vidro descer e fechá-la pelo lado de fora do apartamento. Não tinha coragem para olhar em direção à luneta, a única testemunha de sua malfadada sina de voyeur atrapalhada. Já iniciada a noite, o último clarão de sol já atravessara a fronteira do dia e pode sentir-se oculta na escuridão, enrolada na sua roupa, agora acinzentada pela ausência de luz, em frente ao hotel que não a via e muito perto de alguém a quem agora se expunha. O poste em frente acendeu sua luz e ela agora estava na ribalta que não lhe pertencia. Na sua pior fantasia, não se veria em tão maus lençóis.

24 novembro 2006

Parapeito - VII


Ainda com o echarpe no pescoço e o velho hobby que estava mais à mão foi atender a porta na expectativa que suas fantasias deixaram repousar pelo apartamento. Adelaide e Marialva, duas de suas colegas e amigas, vieram buscá-la para a caminhada que combinaram à saída do laboratório, quando sua mente já estava noutro lugar. Olharam de cima a baixo e perguntaram onde ela pretendia caminhar naqueles trajes. Ela tentou dissimular uma dor de cabeça que não combinava com o enfeite rosa choque no pescoço e com a mão na testa utilizou-se da surrada desculpa da dor de cabeça. As amigas, socadas em suas malhas justas, desejaram melhoras, entreolharam-se e partiram.
Marieta voltou e procurou pela luneta, sua única platéia na performance interrompida. Não estava mais lá. Antes de sentar-se à janela, apanhou seu binóculo e observou os dois carros enfileirados à entrada do motel, ambos com apenas uma passageira cada. Do ponto em que estava viu que elas acenavam entre si e Marieta não resistiu e sentou-se no banco da frente do segundo carro, ainda de hobby e echarpe. Foram para a suíte de luxe, que possuía lugar para dois carros. As duas mulheres lindas e perfumadas a despiram na garagem, mantendo apenas o seu ornamento rosa que enrolaram no seu corpo e a levaram abraçadas para o quarto. Lá, feito dançarina de boate, estenderam-no para que ela se desenrolasse sensualmente e terminasse por cair sobre o corpo de uma delas, a mulata. Com os olhos fechados e rindo à toa, deixou-se conduzir pelas suas novas amigas, que vasculharam suas curvas e seus recantos escondidos, trazendo sensações que nunca sentiu com outros homens de suas fantasias. Enquanto a mulata percorria seu corpo com sua língua, deixava os seios volumosos e firmes deslizarem delicadamente pela sua pele. A loira, de cabelo solto, subia pelas suas pernas e afundava-se entre elas, fazendo sentir aquela língua longa e ágil naufragando em suas entranhas. O binóculo soltou-se de sua mão e ficou suspenso no parapeito, fazendo-a esticar-se para fora da janela para recuperar as lentes de seus desejos. Mal percebeu que tinha o corpo semi-nu e que a luneta voltara à janela.

20 novembro 2006

Parapeito - VI


A enxurrada de fim de tarde atrasou-lhe o retorno para casa. Depois de um dia inteiro examinando excrementos humanos, sangues doentes e urinas fétidas, corria para seu apartamento para saborear seus desejos, feito doce em manhã de páscoa.
Antes de subir as escadas na entrada do prédio, lembrou-se da luneta a espreitá-la e voltou à calçada. Lá estava ele, com o instrumento direcionado para a sua janela. Pensou em ir até lá, mas dizer o quê se ele fazia exatamente o que ela experimentava todas as noites em direção ao motel? Subiu os quatro andares aflita: hoje seria protagonista.
A noite já iniciava a deitar-se sobre o horizonte, estendendo seu manto de estrelas após a chuva torrencial da tarde. Num ângulo que podia ser vista e com uma meia luz propícia, foi desfazendo-se de suas roupas e deixando a mostra suas carnes volumosas, porém bem distribuídas. Chegou a pensar em fazer uma dança, enrolar-se num echarpe, sob uma música de Kenny G., o som que mais gostava de ouvir enquanto se acariava. Mas, não. Apenas despiu-se displicentemente e de quando em vez jogava olhares para o homem de luneta. Ele entrou voando por sua janela e viu que aquilo não era uma luneta. Era algo mais interessante..., bem mais interessante. Ele passou a luneta entre suas coxas, subiu pelas suas costas enquanto ela se agachava para virar-se e receber em sua boca... Alguém bateu à porta.

17 novembro 2006

Parapeito - V



O binóculo foi presente de seu amigo por ter ido junto à parada gay. Disse-lhe que gostava de olhar a paisagem e herdou a relíquia rosa. No fim de tarde abafado, onde nem os pássaros se animavam a cantar, ela suava em sua janela com o novo equipamento em sua mão. Podia ver detalhes daqueles que se aproximavam da entrada do motel como nunca teria imaginado antes.

Marieta observou o homem cabeludo, de bigode e costeletas com barba por fazer, aparentando trinta e poucos anos. Para sua surpresa ele estava sozinho no carro. Baixou o binóculo e viu escrito no pequeno Fiat Uno: "Desentupidora Talimpo". Já estava buscando outro carro, quando sua mente vou de si e despiu-se para esperar o serviço no quarto. Ele entrou com seu macacão com ferramentas penduradas, aberto até quase a cintura, deixando a mostra a pele bronzeada forrada de densos pêlos negros. Marieta, deitada na cama redonda, pediu que lhe mostrasse os instrumentos e para o que servia, ao que ele foi generoso e prestativo. Depois da chave inglesa, ela quis saber o que mais ele trouxera dentro do macacão, que marcava por fora da roupa. Ele desafiou sua curiosidade e pediu que ela descobrisse por si, tateando o volume. Ela chegou mais perto e pediu para espiar para dentro da roupa no mesmo instante em que a mesma luz do dia anterior ofuscou-lhe os olhos e derrubou-lhe das nuvens. Procurou pelo binóculo que pendia em seu pescoço suspenso por uma fita de cetim prateada, do jeito que ganhou de seu amigo e buscou identificar de onde vinha o raio de luz, no prédio quase em frente, ao lado do motel. Descobriu uma luneta em sua direção.

16 novembro 2006

Mini Contos Cotidianos

Estou lançando meu novo blog de mini contos:
Sejam bem-vindos!

14 novembro 2006

Parapeito - IV




Nas longas tardes de horário de verão, Marieta chegava ainda com sol em casa e podia assistir o movimento vespertino do motel. O sol dava cores mais realçadas a fachada e possibilitava observar melhor àqueles que por ali passavam. Na tarde quente que agora findava, teve que por um ventilador para refrescar todos seus calores.
Era um carro grande e confortável e, para sua surpresa, cheio. No mínimo cinco pessoas pararam na portaria, pediram um quarto e entraram. Ainda teve tempo de abrir a porta trazeira e espremer-se entre os três homens que lá estavam, todos entre vinte e trinta anos, sendo um negro de altura mediana, um muito branco com uma barba avermelhada e outro que contrastava seu rosto com traços indígenas num corpo alto e musculoso. No banco da frente, no lado do caroneiro, outro rapaz mulato, com sorriso alvo, um brinco pequeníssimo no lado esquerdo. Todos com corpos impecáveis, dentes, olhos, músculos, pernas. No banco do motorista uma mulher bem tratada, entre quarenta e cinquenta anos, cabelos longos, pintados de um loiro dourado que contrastava com a pele bronzeada. Marieta era a última no trenzinho que entraram no quarto, já sem roupa. A um sinal da mulher locomotiva, a força foi invertida e Marieta passou a puxar o comboio, com o negro corpulento a segurar-lhe a cintura encaixando seu corpo ao dela. Circularam a cama king size e foram se enrolando um no outro, pernas sobre peitos, sexos expostos, línguas roçando pelos corpos, beijos que surpreendiam partes do corpo nunca antes exploradas. Quando tinha o barba ruiva afundado entre suas ancas, o negro a beijar-lhe os seios, enquanto o mulado lhe beijava a nuca segurando-lhe pela cintura e o índio a mordicar-lhe o pé direto enquanto o esquerdo descançava sobre o sexo dele nada descançado, lembrou-se da mulher e a viu aproximar-se para beijar-lhe a boca. A imagem da mulher a fez deixar seu sonho e não conseguiu mais voltar à fantasia, até porque, naquele momento, o sol se punha e refletia numa estranha luz que rebatia no prédio quase em frente e lhe ofuscava a visão feito farol em mar aberto.

10 novembro 2006

Parapeito - III




Ao chegar em casa, a primeira coisa que olhava era para a janela, antes mesmo de largar a bolsa, tirar o uniforme do laboratório de análises, onde trabalhava, ou até mesmo apanhar algo na geladeira para saciar a fome. Sua fome era outra e por isso deixava já a manta ao alcance para apoiar-se no parapeito nas noites frescas de primavera.
Naquela noite, mal havia se acomodado, quando tocou a campainha e para sua surpresa, suas quatro colegas de trabalho adentraram o apartamento cantando parabéns, com um bolo, algumas cervejas e salgadinhos. No início não entendeu o que ocorria, pois fazia algum tempo que não contava os anos. Eram, na verdade, três mulheres e um gay, mas ao seu nível de proximidade tratavam-se no mesmo gênero. Eram as quatro um grupo muito próximo e ela um quinto elemento, preservando a distância que sempre a manteve longe das pessoas e próxima a suas fantasias.
Ela deu ainda uma rápida olhada pela janela, onde podia ver que o movimento no motel já se iniciara. Deu um suspiro, abriu um sorriso meio de agradecimento, meio de obrigação e as convidou a sentar. Ficou em sua cadeira e entre um salgadinho e um gole, espiava para fora sua noite de sonhos perdidos.

08 novembro 2006

Parapeito - II

Imagem emprestada daqui
No sul do Brasil, a mudança de estações é feita de sol, trovoadas e mais sol. A sua janela, respingada pelo temporal, cintilava cada gota como se fossem pequenas luzinhas, quando o sol se pôs. Chegava a hora do dia que mais esperava, já no lusco-fusco que inundava e fertilizava os vales de suas fantasias.
O primeiro carro era sempre uma expectativa. Era o abrir de sua imaginação. Hoje, um Audi preto, de vidros escuros não lhe permitiu grandes visões, porém pôde ver o braço dele estendendo a mão e apanhando a chave. Era um braço peludo, com uma pulseira dourada a refletir a iluminação do hall de entrada. Na contra luz, viu a mulher de cabelos longos quase que deitada sobre ele, como se o prazer já tivesse iniciado.
Ela ajeitou-se melhor e antes que a porta do motel fechasse, pode perceber a música que rodava no som do automóvel. Era um tango, bolero, algo assim latino e antigo, como um filme dos anos cinquenta. A porta fechou e ela embarcou no carro, no banco de trás para assistir à cena bem acomodada. Entraram no quarto, com o homem de seus cinquenta e tantos anos, levando pela mão a mulata de corpo roliço, seios firmes e volumosos, ancas largas e convidativas. Beijaram-se os três. Ela entrepôs-se entre os dois, recebendo os beijos nos seios e deixando-se lamber as costas pela mulher. Entraram para o banheiro, adjunto ao quarto, separado por um vitrô que transpassava a meia-luz em tons verde e marrom formando um mosaico estilo Kama-Sutra. Os três acomodaram-se na mini-piscina e na suavidade das peles molhadas se acariciavam, enquanto o braço cabeludo com a pulseira dourada se esfregava em seu corpo que queimava, buscando os recantos mais ardentes e sensíveis entre suas coxas.
Sentiu a umidade tomar conta de suas calcinhas, levantou-se, fechou a janela e foi tomar uma ducha.

06 novembro 2006

Parapeito - I


(imagem tomada emprestada daqui)
Quando o sol se punha, ela ia para a janela assistir o outro mundo que nascia. Morar em frente a um motel, para alguns seria sinônimo de barulho toda a noite. Para ela, era um prazer. Em todos os sentidos.
Marieta vivia só, se não contarmos suas fantasias, que encheriam várias camas. A cada casal que entrava, de certa forma ela ia junto. Seus olhos acompanhavam o veículo e podia sentir-se sentada dentro dele, no meio deles, fosse quem fosse. No inverno providenciava uma manta para apoiar-se no parapeito e manter os seus aquecidos. Qualquer resfriado poderia tirar-lhe de seu camarote e isso era impensável.
E Marieta via cada uma...

03 novembro 2006

Enfim, Zulmira

Originalmente publicado em 19/01/2006

Dona Zulmira, Zulmira, Zuzu... Tanto faz, era assim que a chamavam.

Zulmira era uma mulher dada ao trabalho e à família. Acordava cedo, seis e trinta. Levantava antes que o marido e as duas meninas, para aprontar-lhes o café. O aroma invadia todos os recantos de seu lar, preparava as torradas no ponto para Jonas e tostadas para Pietra e Janice, as gêmeas de oito anos. Ia até o quarto e lembrava o marido que já estava em seu horário, com um leve beijo na testa. Para as meninas, abria a janela e deixava entrar o sol nascendo, ligava o aparelho de som com alguma música suave de agrado delas e anunciava, com sua voz melodiosa, que era hora de acordar. Em dez minutos todos estavam à mesa e discutiam os afazeres do dia.

Às sete e quinze, Zulmira tomava seu carro, Jonas o seu, e ambos iam para seus trabalhos, com as meninas no banco traseiro do carro de Zulmira. Jonas ainda acenava e jogava um beijo a distância, antes de dirigir-se à cidade. Moravam próximos à escola, no bairro seguinte em direção oposta ao centro da cidade, o que não dava dez minutos, tempo suficiente para que Dona Zulmira entrasse em sala de aula pontualmente.

Entre dúvidas de português e recortes de cartolina, suas crianças lhe observavam atentas a todos os detalhes e preparavam as lembranças para o dia das mães. No intervalo, encontrava-se com suas colegas para falar da novela do dia anterior, do Jorginho, aquele menino levado que só a Zulmira conseguia conduzir.

Às onze e trinta estava liberada, esperava as meninas e voltava para casa, a tempo de preparar o almoço e esperar por Jonas, que via de regra atrasava-se e chegava quase às doze e quinze. Zuzu, como ele a chamava, lhe recebia de avental, mas nunca sem seu perfume, para que Jonas lhe desse o seu beijinho nos lábios. Zuzu cozinhava muito bem, sempre dizia Jonas, seguido de uma breve risada, apresentando sua barriguinha que lhe já suplantava o cinto. As meninas brincavam, corriam, brigavam, mas quando Zuzu chamava era uma vez só e estavam à mesa para saborear as delícias que mamãe fazia. Eram lasanhas, assados, saladas bem postas, arroz não faltava e duas vezes por semana um feijão muito bem temperado, que só Zuzu conseguia fazer e não dava a receita!

Após o almoço, Jonas saía, dava-lhe o beijo suave de despedida na sua face e já levava as meninas para suas atividades. Nas segundas e quartas, faziam inglês para que pudessem competir no mercado de trabalho quando adultas, recomendava Jonas. Nas terças tinham balé e na sexta natação. Sobrava a quinta-feira para porem seus deveres em ordem, divertirem-se na piscina no verão ou convidarem alguma amiga para passarem as tardes brincando no jardim.

Bem, hoje era segunda-feira e Zulmira não poderia perder tempo. Lavava toda sua louça, tomava um banho e surgia Abigail, cheirosa, lasciva, lábios pintados, roupa justa, seios bem desenhados em seu decote ousado. Seus saltos altos eram de nove centímetros, o que não era necessário, pois com seus um metro e setenta e cinco já era bastante alta. Abigail pegava sua bolsa, seu carro e ia para a capital, a quarenta quilômetros, praticamente meia hora, onde tinha seu ponto e faturava uns trocados.

Jonas nunca desconfiou de nada. Apesar do salário de professora, conseguia manter seu carro novo, roupas novas, o perfume que Jonas adorava e até pagou a piscina! Era feliz assim, apesar de Zulmira ter sempre uma reclamação: não gostava de seu nome, porque desde seus tempos de menina na escola, sempre fora a última da chamada.

31 outubro 2006

Laboratório Literário - final

São Paulo, 31/10/2006, névoa, 21ºC

Do alto do Anhangabaú, fumando se cigarro, ela relembrava seus últimos dias, com a sensação de tristeza e liberdade. Na noite que o encontrou na casa de seus pais, não era ele o mesmo homem que frequentava suas saudades, aquele que deixara em casa com seu filho há exatos dez anos atrás, na manhã do acidente. Agora, era um homem taciturno, amargo e distante. Ele contou-lhe de como havia saído da casa para comprar o leite, deixando seu filho dormindo por alguns instantes e o que sucedera-se nos minutos seguintes. Criou um vazio mental de dois anos, que só foi reacendido ao ser encontrado pelo pai mendigando pelas ruas. Foi reconstruindo suas lembranças, onde ela fazia parte das feridas, por isso nunca quis procurá-la. Ela escutou com amargura, lembrou do peso da morte que havia sentido por ele, lembrou da fuga obscura que procurou nas drogas e na bebida, lembrou do filho carbonizado, lembrou do adeus que nunca foi dado. Após visitarem o túmulo, juntos e distantes, ele passou a falar da indenização que poderia receber pela morte do filho e dele próprio, haja visto que fora dado como morto. Antes de vomitar, ela apenas pediu que lhe desse alguns trocados e que ela teria que voltar outro dia. Ele deu-lhe cem reais e ela se foi, sem que ele perguntasse qualquer coisa sobre sua vida.
Olhando de cima daquele lugar, inangurou seu primeiro dia de vida após dez anos, ao jogar seu cigarro no viaduto e ver o ônibus que passava estraçalhá-lo. Ao seu lado, seu novo amor, que lhe apoiou apenas pelo brilho de seus olhos, sem cobrar-lhe nada, sem perguntas.
E a indenização da companhia aérea? Sim, iria buscar. Afinal, fora viúva por dez anos, morrera de amor e perdas durante todo esse tempo.

+++++

Amigos, fecho aqui o laboratório. Foi uma aventura interessante, onde podemos exercitar expectativas perante pessoas imaginárias, num fundo histórico, que não foi premeditado. Ao buscar a história do personagem, tentar colocá-lo na sua idade, acaba-se por resgatar eventos reais. Assim, ela acabou frequentando as passeatas que derrubaram o presidente Collor, em 1992, e um acidente aéreo de grandes proporções que efetivamente ocorreu com o Fokker 100, da TAM, ao decolar do aeroporto de Congonhas, em 31/10/2006.
Poderia ter rendido mais, porém ficamos poucos participantes a levar a estória. Agradeço a todos que participaram, principalmente ao Tônio que nunca ausentou-se.

... e segue o blog!

26 outubro 2006

Laboratório Literário - VI



Estação Jabaquara, metrô de São Paulo, 27ºC

Na saída da estação, ao final da tarde, o tempo abafado com vento fraco e úmido que vinha de noroeste prenunciava a chuva que não tardaria a chegar. Acendeu seu cigarro e seguiu até a rua Luís Orsini de Castro, 372, muito próximo ao local onde, em 31/10/1996, saía de casa para o trabalho e avistou aquele enorme avião voando muito baixo até arrebentar-se contra as casas, inclusive a sua, onde seu marido e seu filho ainda dormiam. Era a primeira vez que voltava a São Paulo depois do enterro do menino e da busca pelo corpo do homem, que ainda muito jovem a trouxera para essa selva de alfalto e concreto, depois de terem se conhecido num encontro estudantil, em 1992, quando de caras pintadas ajudaram a derrubar um governo.
Da estação até o endereço, foram menos de quinze minutos, porém sua vida andou dez anos até parar diante daquele lugar que lhe havia sido indicado por um telegrama sucinto: "Venha pt notícias passado pt" assinado pelas iniciais do nome de seu marido desaparecido.
Estava a apenas duas quadras de seu antigo endereço e reconheceu o número 372 como sendo a casa de seu ex-sogro e soou a campainha. Na fresta da janela, atrás de uma cortina, aquele rosto conhecido, sofrido, amargo não lhe lembrava em nada a fisionomia feliz de dez anos atrás. Ele foi até a porta, liberou o portão e a convidou a entrar.

++++++

Pois bem. Ela reencontra o marido dez anos depois. Quanta coisa a explicar...

1 - Ele a abraça ou a trata com distância?
2 - Ele a convida para rever seu antigo endereço ou vão ao túmulo do filho?
3 - Ela fica com ele ou volta até o apartamento do homem que a acolheu quando sua moto foi roubada?

24 outubro 2006

Laboratório Literário - V


Edifício Copan, São Paulo, 23 de outubro, 18ºC

Fumando um cigarro, do alto do vigésimo quarto andar, ela observa cidade imensa e sente-se um grão de areia no deserto. O sol lhe ofusca a visão e antes da última baforada ela olha para a cama desfeita e recorda de suas últimas noites de amor.
Desde que roubaram sua motocicleta na chegada da cidade, sob frio e chuva, sentiu como se caísse num enorme fosso.
Sob o néon de cerveja a cintilar em suas lágrimas, desistiu de tudo. Levantou-se do meio-fio onde chorara as últimas lágrimas que trouxera do sul e voltou ao bar, na ânsia de afogar-se numa cerveja, ou qualquer outra bebida que seus trocados alcançassem. Para sua surpresa, ele também voltou para buscar o casaco esquecido e se viram de novo. Como uma criança perdida e na aflição de quem está a beira do abismo procurou seus braços e ele a aconchegou até que ela recuperasse a voz e relatasse o que aconteceu.
Sua sina trazia-lhe por rumos e perdas, porém agora lhe mostrou uma nesga de luz. A carona à São Paulo seria um pretexto para o destino levá-la ao Copan, no apartamento onde ela voltou a sentir o prazer há tanto tempo sufocado em desalentos. O ruído das buzinas e do trânsito soaram com melodia. Primeiro sentiu um chão sob seus pés, para em seguida sentir flutuar em sensações.
Mas o tempo não espera... Ela teria que seguir os passos que lhe trouxeram até ali. Desde aquela manhã de 1996 em que viu o avião chocar-se contra sua casa, apenas pôde enterrar seu filho pequeno e nunca mais soube de seu marido. Era hora de procurar pelo endereço. Era hora de fechar os parênteses e retomar sua trilha. Era hora de trabalhar, sobreviver e para isso buscou novamente o papel amassado no bolso das calças caída no chão sob as dele.

++++++++

Amigos, as idéias oferecidas ficaram um tanto dispersas dessa vez e tive que montar meu quebra-cabeças com as peças que me deixaram.

Agora, o ponto é esse:

1 - Ela ganha um nome ou continuamos tratando-a em terceira pessoa?
2 - O que aconteceu com o marido após o acidente aéreo?
3 - Ficou óbvio que sua subsistência está relacionada com o endereço que trouxera. Que endereço é esse?

20 outubro 2006

Laboratório Literário - IV


Taboão da Serra, SP, 19/10/2006, 17ºC, chuva.

No terceiro dia de viagem, o dinheiro já estava no fim e os lanches rápidos e frutas furtadas na estrada já não saciavam sua fome. Os out-doors de cerveja lhe chamavam a cada curva e isso lhe assustou. Há três anos não reparava mais nelas. Próximo a São Paulo, noite de chuva fina, que entrava por cada fresta de sua jaqueta de couro, obrigaram-na a parar e comer um prato feito.
Na mesa ao lado, ele cravou-lhe os olhos de ébano, enquanto ela tirava seu capacete e soltava seus cabelos castanhos, que com a umidade ficavam ainda mais crespos. O rapaz de sorriso alvo e pele negra, sorriu-lhe e convidou-a a sentar-se com ele mostrando-lhe a cadeira vazia, que lhe era um convite após dois dias que mal dormiu em abrigos precários e minutos sumários.
Conversaram como se conhecessem-se há muito tempo, ela falou de sua volta a São Paulo, ele falou de seu trabalho com vendas no interior, ela falou de sua moto, ele falou se seu cabelo, ela falou de seus olhos, ele não falou mais nada. Prometeram se encontrar de novo e ela sentiu-se amparada.
Antes de seguir viagem, fumou seu penúltimo cigarro, procurou no bolso trazeiro o bilhete com o endereço no Brás, pegou seu capacete rosa, saiu pela porta e não encontrou mais sua moto.

++++++

Amigos, Florianópolis é encantadora, mas não podemos viver todas as vidas numa só. Ele chegou na sua vida como quem surge numa chuva fina, quase neblina.

Deixo os próximos desafios:

1 - Volta e pede uma bebida ou chama a polícia?
2 - Consegue ainda encontrar com o rapaz ou pega carona para São Paulo num caminhão?
3 - Vai ao endereço que tinha ou a outro lugar?

17 outubro 2006

Laboratório Literário - III


Madrugada de 17/10/2006, Rodoviária de Porto Alegre, 14ºC:

Ela espreitou de dentro do banheiro imundo, e viu a velha gorda e cega que estava sentada rente a porta, trocando pedaços pequenos e ásperos de papel higiênico por alguns trocados. Vasculhou no bolso de sua calça e encontrou algumas moedas que seriam inúteis para comprar o cigarro que não saía de sua mente. Ao passar pela mulher, largou suas moedas e pegou duas notas de dois reais. O caso era urgente, não era hora para misericórdias. A velha ainda lhe disse um “Deus lhe pague” mecânico, vazio como palavras ditas ao vento em noite de tempestade.

Na saída da rodoviária, checou na bolsa seus cem reais tomados emprestados do cunhado, que deveria servir para chegar a São Paulo em sua moto de impostos vencidos e tanque pela metade. Na madrugada, quando saía de Porto Alegre, os faróis jogavam flashes sobre a Vila dos Papeleiros, que contrastava com a opulência de uma cidade que lhe negava futuro. Não tinha tempo para saudades, não tinha saudades do tempo em que tentou de tudo para viver, do lugar onde safou-se das drogas e do álcool, mas não conseguiu escapulir das armadilhas que o destino lhe pregava. Era o Rei Midas ao contrário: a Rainha Merda.

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Iniciamos nosso laboratório. Até ontem à noite, fui dormir pensando no cara, na rodoviária. Abro minhas mensagens hoje e vejo que a estória tomou outro rumo, como deveria ser. Dos cinco posts, três pediram por uma mulher. Aeroporto e motocicleta passaram a frente da rodoviária, mas optei pela motocicleta. A noite foi vencendora por três votos.

Deixo as próximas questões:

1. Florianópolis, São Paulo ou retorna Porto Alegre
2. Encontra ele, ela ou fica só
3. Clima romântico, golpe ou atrito de idéias

16 outubro 2006

Laboratório Literário - II


Abro hoje uma série incompleta: o laboratório literário. Vou à frente, chamando a estória que será erguida pelos próprios leitores.

A idéia básica é de um conto que está ocorrendo concomitantemente, no mesmo espaço de tempo entre as publicações. É algo vivo: a partir de algumas perguntas, ao final de cada post, vamos construindo tudo, seja tema, personagens, ambientes. Os próprios comentários nutrirão o próximo post de acordo com as questões deixadas.


Pretende-se que seja bissemanal, às terças e sextas-feiras.

Quem se habilita? O acesso é livre a qualquer tempo, assim como a vida, que, quando menos se espera se ganha ou se perde, muda de rumo.


Deixo o primeiro desafio:

1 – ele ou ela?
2 – aeroporto, rodoviária ou motocicleta?
3 – sol, noite ou tempestade?

10 outubro 2006

Laboratório Literário




Um desafio!
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A partir de 16/10/2006
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Aguarde...

09 outubro 2006

A Olho Nu - última parte

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Se hoje saio à rua e me atiro nas ondas da multidão, posso provavelmente ser visto com meus óculos azuis, minha bengala prateada, minha roupa sem combinações. Realmente posso ser visto assim. Mas o que eu vejo? Vejo o cheiro que teima em cruzar por mim, ora perfume, ora odor, ora de nojo, ora de amor. Virei um poeta andarilho, daqueles que arrecadam os aromas e os guardam na mente. Depois que vaguei pela rua, chego em casa e me deito nos lençóis de cetim que ela ajeitou pra mim. De banho tomado, de pele eriçada, fico esperando minha mulher amada, com seus olhos macios, com sua penugem suave nos braços, sua boca macia e quente, que vai me devorar o corpo e navegar na mente, feito barco no oceano das lágrimas, livre de afogar-me de partidas, pronto para naufragar nos gostos que só o corpo dela me dá.

No teu cabelo macio
Sinto o cheiro de chá
Pode ser camomila
Pode ser maracujá
Sinto o cheiro de cio
Que há no teu gosto do mar
Brotando na tua pupila
Oculta no toque macio
Quando tu queres amar

A Olho Nu - 7ª parte


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Meus olhos, antes vazios perante aquilo que chamam luz, abriram um espaço na minha mente, que preenchi daquilo que vejo: as sensações que tremulam além do óbvio.
Assim fui me construindo. Feito tijolos, meus gestos acumularam volumes diferentes, meus ouvidos vibraram onde ninguém mais percebia, minha língua distinguiu os temperos e meu olfato me guiou muito além do que os olhos podem enganar.
Tenho uma vida pela frente e o que vejo ninguém vê. Traço dos sons à distância e das sensações na pele percebo o que há depois. Por isso escrevo meu jeito de dizer o que vislumbro.

05 outubro 2006

A Olho Nu - 6ª parte


O sexo veio ao natural. Conheci uma garota que usava um perfume de flores que nunca encontrei antes. Foi lendo Neruda que tudo aconteceu. Ainda sinto meus dedos contornando suas curvas, buscando seus segredos e umedecendo em suas entranhas. Os gemidos que compartilhamos pareciam vir de um só corpo quando a penetrei. Beijei seus olhos e os senti fechados, como se procurasse igualar a mim e maximizar o prazer das carícias. Repetimos algumas vezes, ouvindo música clássica, jazz, blues, bossa nova. Neruda combina com blues, Vinícius, obviamente, com bossa nova e um tango me dá um prazer muito mais intenso. Diva se foi, sem me avisar. Lembro apenas do sabor de sal de suas lágrimas que só fui reencontrar no mar, anos depois. A sensação que tive de encontro ao mar é que ali estavam todas as partidas, todos os amores perdidos, todo o adeus possível. Ali, naquela areia fina que me permeava os dedos, diante a imensidão das despedidas que me molhavam em ondas, me descobri poeta.

02 outubro 2006

A Olho Nu - 5ª parte



Quando eu era já adolescente, fomos morar na cidade, a uns trinta quilômetros de nossa casa. Assim, pude estudar numa escola convencional e ao mesmo tempo aprender braile. Até hoje não consigo entender como as pessoas conseguem ler diferente. Na biblioteca havia poucos livros, mas devorei todos. Os que não havia, procurava por gravações onde pudesse ter acesso ao seu conteúdo. É interessante como alguns escritores parecem ter sido cegos quando criança, porque descrevem tão bem que posso imaginar os cheiros, o toque e até ouvir o timbre de voz dos personagens. Tomei gosto pela poesia, porque as metáforas se transformaram em imagens poéticas, onde tudo se explica por sensações, algo que faço desde que minha irmã me vomitou.

29 setembro 2006

A Olho Nu - 4ª parte

Crescemos numa fazenda de muitos cheiros. Tínhamos algumas cabeças de gado, galinhas com penas de texturas diferentes, duas ovelhas, e alguns porcos que ficavam mais distante da casa, porém me serviam de orientação quando eu andava pelo pátio.
Ah, havia ainda a Dona Francisca, que ajudava nos afazeres domésticos e me ensinou os sabores mais deliciosos que eu posso lembrar. Uma amiga de minha mãe, certa vez, comentou que a Tia Chica, como a chamávamos, era uma negra muito simpática. Mais tarde minha mãe me explicou o que era negra: era alguém que tem pele como a noite. Até hoje, ao passear pela madrugada, sinto os aromas e os gestos suaves da Tia Chica a me guiarem.

28 setembro 2006

A Olho Nu - 3ª parte


Minha irmã era dois anos mais nova que eu, acho que já disse isso. Além de vomitar, ela também gostava de esconder alguns brinquedos. Como ela os, era covardia, porém me ensinou a descobrir outros jeitos de desvendar mistérios: imagino que ver seja uma sensação como um toque antes dele mesmo. Apesar dessa aparente desvantagem, eu me safava melhor quando aprontávamos alguma arte, porque ouvia os passos de mamãe muito antes dela. Minha perspectiva era dada pelos sons e movimentos, feito radar. Foco é outra palavra que associo aos sons que percebo de formas diferentes nos dois ouvidos.

26 setembro 2006

A Olho Nu - 2ª parte

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A recordação que trago de minha mãe é a mão áspera, porém carinhosa. Lembro também da sua respiração junto a mim, quando nas tardes chuvosas de inverno me punha com ela e minha irmã na cama para desfrutarmos o calor do acolchoado de penas que tínhamos lá em casa. De meu pai guardo a voz grave e pausada que herdei, que me explicava as paisagens que nunca vi. Lembro dele caprichosamente moldando argila, criando cenários de superfícies e inclinações para explicar como era linda a montanha que havia atrás de nossa casa. Depois andávamos pelo pasto e ele me dizia que eu deveria imaginar o relevo que ele me mostrou e multiplicar por muitas vezes e aí saberia como era. Quando um dia ele me levou até o alto e pude sentir o ar gelado que lá batia, me senti no topo de suas rústicas maquetes e tive a noção de quão pequeno somos no mundo e o quanto havia por descobrir.

25 setembro 2006

A Olho Nu - 1ª parte


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Minha primeira lembrança da infância é o cheiro de vômito de leite de minha irmã mais nova. Acho que eu tinha uns três anos de idade e minha mãe a colocava na mesma cama que eu. Ela tinha, na época, um ano e meio. Quando conto isso a alguém acham estranho, mas minhas sensações são diferentes de maioria, porque, segundo eles, eu não enxergo.
Nunca tive a sensação da visão e por isso não sinto falta. O mundo é composto de aromas, sons, sabores e texturas. Nem tente me explicar como é ver, porque não tenho absolutamente qualquer possibilidade de imaginar o que seja.

22 setembro 2006

Súbito


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No primeiro segundo, ela olha para trás e vê ainda seu pé descolar-se do parapeito e se orgulha da vontade que ultrapassa a razão e lhe joga à morte, para no instante seguinte, lembrar-se dele sorrindo suado ao encontrá-lo em sua cama com sua filha e sente raiva do cafajeste que trouxe para sua casa e, ao terceiro segundo, sente o ar bater-lhe nos cabelos já grisalhos e mal tingidos pelo desgosto que os remédios já não aplacavam mais, até que no quarto segundo lembrou de seu filho morto ainda criança a mamar-lhe o peito e afagar-lhe o queixo, para depois, no quinto segundo, sentir um medo do nada que viria já que se desapegou das crenças, há muito tempo e, no sexto segundo, lembrou-se da mãe há tanto tempo morta e de seu pai caído bêbado na sarjeta e já estava no sétimo segundo quando seu sexo latejou como se uma nesga de prazer perpetrasse o ar e lhe lembrasse o último desejo que sua carne lhe deu e mergulhou no oitavo segundo em que quis acreditar em anjos que a resgatassem para ver um último pôr de sol, antes de estatelar-se na calçada no segundo final.

19 setembro 2006

Fala, Matilde - última parte


Flores, Fernando Botero

Ontem de manhã foi o enterro de Dona Matilde. Segundo o laudo médico, morreu de asfixia provocada provavelmente por algum travesseiro. A polícia entendeu que coisas assim acontecem com quem não consegue cuidar de suas mais primárias necessidades, porém dentro da família havia sentimentos contraditórios. Alguns choravam pela mãe amada, que estivera tanto tempo presente e alegrara suas vidas até àqueles últimos meses catastróficos; outros olhavam suas anotações vagas - numa até havia a palavra PUTA em letras garrafais - e choravam compulsivamente; os últimos, aliviados pelos sigilos que agora poderiam descansar no túmulo, eram mais comedidos e por trás de lágrimas sociais disfarçavam suspiros incontidos.
Porém, segredos não morrem e, quem sabe, algum dia, voltem à tona quando eles próprios chegarem à idade da destruição de mistérios que Dona Matilde presenciou. O que poderá vir à superfície, quem viver verá, para mais tarde soltar os seus, que poderão ser motivos de riso, choro, espanto ou redenção.

14 setembro 2006

Fala, Matilde - 7ª parte

Dançarinos, Fernando Botero

Depois do último episódio da conta fantasma na Suíça, a visitação à querida avó aumentou consideravelmente. Ela passou a ser convidada para jantares em sua homenagem em todas as casas da família, onde todos acorriam com muita presteza. Foi no aniversário de Agnaldo, o único filho homem, hoje viúvo, que todos se sentaram ao redor de Dona Matilde, como quem espera um golpe de sorte. Quem sabe ela teria novamente outro flash com informações mais precisas sobre a conta? Estavam todos conversando, mas com um papel e caneta sempre a espera. Foi exatamente quando Betinha foi buscar uma garrafa de champagne que trouxera consigo de São Petersburgo, que Dona Matilde fuzilou:
- A Betinha é atriz de filme pornô.
Quando ela voltou à sala, sem que tivesse ouvido o relato seco de sua mãe adorada, todos a esperavam de boca entreaberta. A irmã cutucou seu marido e o convidou para irem-se embora, as sobrinhas queriam saber mais de sua carreira e os primos correram para a Internet.

11 setembro 2006

Fala, Matilde - 6ª parte

Sobre a Sacada, Fernando Botero

De surpresa, como só artistas sabem fazer, a filha mais nova de Dona Matilde chegou. Elisabete, a Betinha de casa, agora conhecida como Kurvana Belina no cinema russo. Ela deveria estar pelos quarenta e cinco anos, embora há alguns anos esteja afirmando ter trinta e quatro. Sua presença despertava a curiosidade das sobrinhas e olhares incestuosos dos cunhados e sobrinhos. Veio para ver sua adorada mãe, que sempre a apoiara em sua carreira, desde que fugira de casa com um circo esloveno, tendo ganhado o mundo e fama no exterior. Até hoje, ninguém viu nenhum filme dela no circuito comercial, ao que ela responde que só atua no cinema cult da Rússia.
A família, em menos de duas horas, se reuniu na grande sala da casa de Dona Matilde, prepararam um jantar de cinema e trouxeram dona Matilde para a mesa. Quando todos estavam sentados, Betinha fez uma manifestação de apoio à mãe enferma e de agradecimento por reunir a família. Foi no meio do discurso emocionado, que a vovó voltou a atacar:
- A senha da conta no banco suíço é 63496BGWEY37AQ.
De um silêncio contemplativo inicial, houve um alvoroço por canetas, que chegaram atrasadas para o resquício de memória imediata de todos. Dona Matilde ainda levantou-se, bateu palmas e mijou-se.

07 setembro 2006

Fala, Matilde - 5ª parte

Madre Superior, Fernando Botero

- O que eu mais gostava era de comer a prima Eulália!
Estavam justamente no quarto, Alzira, a filha que levara a mãe à consulta onde o Mal de Alzheimer havia sido diagnosticado, seu marido Norberto e o seu filho mais velho, Genivaldo Neto, que, embora fosse o candidato mais provável à herança política do deputado, era visivelmente efeminado, isso para não dizer que seu armário já tornara-se pequeno para seus instintos. Geninho, como a mãe o chamava, comoveu-se com a declaração da avó, chorou entre risos de cumplicidade e disse:
- Papai, mamãe, eu sou gay! - e abraçou-se emocionado na mãe e no pai, sob os olhos distantes da avó.
Dr. Norberto ficou estático perante aquela singela declaração e viu confirmar-se suas suspeitas tantas vezes sufocada. Dona Alzira, ao contrário, abraçou demoradamente o filho que finalmente assumira sua condição sexual, com a ajuda fortuita de uma vó catatônica. Durante aquele abraço de compreensão para eles e de perplexidade do pai, olharam para a avó demoradamente, até que a filha indagou:
- Mamãe?! A Tia Eulália não é a falecida Irmã Consolação?

04 setembro 2006

Fala, Matilde - 4ª parte


Cigarros, Fernando Botero


- O Genivaldo ganhou propina na venda da Central Elétrica.
A família começou a temer levar a matriarca para locais públicos, mas não teve como evitar que ela estivesse presente no enterro da filha Joice. E justamente quando descia o caixão, entre choros comovidos dos filhos, noras e netos, que Dona Matilde resolveu manchar de vez o nome e a reputação do seu falecido Genivaldo, o deputado que tanto orgulho trouxe à cidade. O viúvo, ex-prefeito e braço direito do deputado, não conteve a ira e gritou:
- Será que não dá para calar a boca dessa velha?
A irmã e o irmão da mais nova falecida da família, protestaram pelo desrespeito, mas em voz baixa, porque também estavam agora ofendidos. Resolveram então que, a partir daquele dia, Dona Matilde ficaria apenas em casa, no máximo um banho sol de uma hora por dia.

31 agosto 2006

Fala, Matilde - 3ª parte

Voltando para Casa, Fernando Botero
- A Joice não é filha do Genivaldo.
Dona Matilde, a viúva mais apaixonada, depois de dez anos de luto do Deputado Genivaldo Correia Dornelles e Castro, resolveu confessar sua traição tão bem guardada. Foi durante a missa de Ramos, justamente durante o ofertório, antes do sino bater confirmando a palavra do Senhor. Sua voz, muda já há algumas semanas, ecoou pela nave principal da catedral e perdeu-se no burburinho que se seguiu. Sua filha mais velha, Joice Dornelles e Castro Monteiro, aquela que por muito tempo havia sido a primeira dama do município, levantou-se antes de todos ainda ajoelhados e gritou um "NÃO!" sonoro e bateu em retirada da igreja. Poderia ter sido um delírio de Dona Matilde, poderia ser um mal-entendido qualquer, mas, de repente, a suspeita sepultada desde a infância martelou-lhe o coração e não houve quem a detivesse na escadaria em frente ao templo. Seus dois filhos ainda saíram atrás dela, mas não detiveram a louca e desenfreada corrida pela avenida, que só parou quando ela estatelou-se contra o ônibus 2712, da Viação São Judas, que fazia a linha para o cemitério.

28 agosto 2006

Fala, Matilde - 2ª parte


- Raspei a buceta quando casei.
Aquela declaração da avó, no meio do almoço de domingo, quando sua filha lhe alimentava perante os netos e bisnetos foi o primeiro escândalo. Alguns riram disfarçadamente, outros deixaram cair os talheres. A bisneta Aninha, de três anos perguntou:
- Pai, o que é buceta?
A resposta veio pelo apelido que a menina aprendera para rotular sua própria vagina infantil:
- Pepequinha, Aninha – disse o pai quase sussurrando.
- Por que a bisa raspou a pepequinha? – quis saber a pequena.
O pai disfarçou, agachou-se junto ao ouvido da menina e disse para perguntar a sua mãe, mais tarde. A pequena curiosa não quis esperar. A noção de depois para ela era algo vago, que poderia durar uma eternidade, talvez até ficar velhinha como a bisavó.
- Mamãe, por que a bisa raspou a pepequinha? – gritou a menina do outro lado da mesa.
As risadas pipocaram pela mesa, menos no rosto da Dona Matilde, que voltou ao ser estado letárgico, deixando escorrer um pedaço de macarrão pelo canto da boca.

25 agosto 2006

Fala, Matilde - 1ª parte


Alta Sociedade, Fernando Botero
Na saída do consultório, tiveram consciência da inversão de hierarquia que a idade traz. Andréia, a neta, tentando ser pragmática, foi a primeira a falar:
- Mamãe, a vovó está velhinha... É natural que chegássemos a essa situação algum dia. Alzheimer não é a melhor forma de envelhecer, mas hoje em dia podemos conviver com a doença, além do que temos uma família grande e unida.
- Filha, mamãe está tão bem fisicamente, apesar da bengala. O que eu não esperava era que de um dia para o outro, tivesse que vê-la catatônica como está. Fico preocupada com a qualidade de vida que ela terá daqui para a frente.
- Já eu me preocupo mais com a sua saúde, mamãe. Você já está com 58 anos e terá que cuidar da vovó como se ela fosse uma criança. Graças a Deus, temos condições de contratar uma enfermeira e é o que faremos imediatamente.
- Darei todo o carinho que ela sempre me deu.
Vovó Matilde era uma octogenária, mas até o ano anterior aparentava excelente saúde. Depois de uma queda, teve que colocar uma prótese no joelho, mas isso havia acontecido há vinte e cinco anos atrás, quando ela tinha somente sessenta anos, e soube aproveitar muito bem a vida depois disso, viajando o mundo com o falecido por alguns anos e, depois da morte dele aos setenta e cinco, com seus filhos e netos. Porém, há alguns meses, começaram os primeiros sinais da doença, como esquecimentos, conversas desconexas e algumas atitudes que surpreenderam a família.
Hoje, depois do atendimento médico, andava apoiada no braço da filha, em silêncio, como se tivesse distraída. Para entrar no carro, sua neta apoiava a mão sobre sua cabeça e ela flexionava os joelhos, olhando para cima, como se não entendesse de onde vinha aquela pressão para baixo.

23 agosto 2006

Tabela Prática da Vida Humana



Quanto vale a sua vida? Depende de sua nacionalidade, etnia e religião. Explico...

Se você é um americano e perdeu alguém nos atentados de onze de Setembro, em troca de seu ente querido você tem o direito de receber sessenta corpos iraquianos ou afegãos. Não é ótimo?

Se você é israelense e tem um primo soldado que seja seqüestrado, a promoção é imperdível. Sem que ele seja morto, você pode receber cem corpos libaneses, ou, pasme, até quatro corpos brasileiros! Só não pode escolher, nessa promoção só valem corpos de origem árabe.

Se você é africano, poderá participar do PRETHU (Programa de Retirada e Extermínio Total de Humanos). Reúna vinte amigos que também sejam jovens, negros, famintos e soros-positivos e poderão ser enterrados numa mesma vala comum, haja visto que ainda haverá oitenta outros para enterrá-los. Mas aproveite logo, pois em breve será o contrário. Serão só vinte para enterrar os outros oitenta que morrerão de fome ou falta de assistência às vítimas da Aids.

Agora, se você é morador do Canadá, Nova Zelândia ou da Europa, a cotação está ótima. De cada cem mil habitantes, menos de cinco serão assassinados no próximo ano. Se for brasileiro, carioca, ou mesmo habitante de qualquer cidade satélite das metrópoles brasileiras a cotação está em cem mil por cinquenta no mínimo. Ou seja, a cotação está dez por um. Imagine só: de cada morto branquinho você recebe imediatamente dez corpos cheios de ginga e alegria! Uma barbada!

18 agosto 2006

Palanques


O velho político estava sorridente na esquina mais movimentada da cidade. Entregava seus folhetos com um sorriso largo, passava a mão na cabeça das crianças, cumprimentava os mais idosos como se fossem conhecidos de longa data. Justamente quando pegava no colo uma menina de vestido rosa e cabelo encacheado, ouviu um grito vindo do anonimato que encoraja as verdades e debochava da mentira:
- Corrupto!
A mãe ainda conseguiu aparar a criança que do braço do velho senhor despencava. Como numa sinfonia de Beethoven, todos os ruídos pararam e ficaram de prontidão para o próximo compasso.
O velho levantou a bengala e desafiou:
- Quem disse isso?
As pessoas da primeira fila faziam que não com a cabeça, com o dedo indicador, até com o pé uma senhora negou. Um cachorro de rua que ali rondava chegou a dar um latido, mas foi logo inocentado pelo timbre de voz. Entreolhavam-se enquanto o burburinho aumentava. O velho voltou a perguntar:
- Quem foi que disse isso?
- Fui eu! – uma voz rouca veio do meio da multidão. Dava para escutar o barulho que faz o sinal ao mudar de cor no instante seguinte à declaração daquele outro velho de estatura baixa, de bigode branco e fino, com sua bengala metálica.
A multidão, como que comandada por um diretor de cena, foi se abrindo até que os dois se encararam com seus panfletos nas mãos. O velho baixinho e desafiador, trazia no peito o símbolo de seu partido, logo abaixo de sua foto, de uns 30 anos atrás, quando ainda tinha algum cabelo no meio da cabeça, onde agora jaz uma pobre verruga, que, por ironia, ostenta um grosso chumaço de cabelo negro.
- Só podia ser Vossa Excelência Venceslau de Araújo, o comunista mais gatuno que já vi!
- Vou te perseguir até teu túmulo, velho corrupto, ladrão, fascista de uma figa!
- Olha quem fala, olha quem fala!... Ainda tenho aquelas fotos de Nova Iorque onde Vossa Excelência e eu fomos juntos e que o senhor só queria andar pela noite e dizia que estava estudando a segurança pública!
- Benevides Madureira, o santo homem que conseguiu verbas para erguer três ginásios de esporte para dez mil pessoas cada um, numa cidade que tinha apenas dois mil habitantes!
As bengalas eram balançadas feito espadas. A saliva de um já se aproximava dos óculos do outro e os passos arrastados já tinham sido desperdiçados na mesma direção. Aos berros que estavam, seriam ouvidos a uma quadra de distância. As pessoas assistiam à cena, alguns aplaudindo, outros vaiando, outros pasmos em ver figuras tão conhecidas na cidade digladiando em insultos.
- Deputado Venceslau, ainda com aquele slogan de ajudar aos miseráveis? Vossa Excelência não se esqueceu de que a verba que serviria para erguer o hospital de pronto socorro foi parar em vossa fazenda em Goiás?
- E o senhor Madureira, que dizia que a educação era fundamental, o que fez com o dinheiro que recebeu das empreiteiras que forjou vencedoras das licitações para receber seus quinze por cento, seu ladrão sem vergonha? O combinado era dez e Vossa Excelência quis mais, seu mau caráter!
- É fácil dizer que eu sou mau caráter, quando o digníssimo colega usou de documentos falsos para vencer a licitação que asfaltou a estrada que vai até a sua fazenda!
- Pelo menos não vendi minha fazenda para a reforma agrária e depois expulsei os colonos com meus jagunços!
- Claro, o nobre deputado mandava matar e nunca foi pego, porque pagava muito bem os juizes!
Enquanto tudo isso transcorria a população ria, aplaudia e gritava vivas ora para um ora para o outro.
- Não tenho mais idade para ser ultrajado desse jeito!
- Sua velha onça vermelha, porque não se aposenta, já que o ilustríssimo colega recebe aposentadoria desde os vinte e oito anos?
- E Vossa Excelência, que não se aposentou e ainda recebe salário de quatro repartições públicas?
O povo vibrava com o bate bocas instalado. Faziam comentários, gargalhavam, vaiavam. Meia hora depois o episódio tinha acabado e o povo seguia seu curso, feito um rio que se joga ao mar e não sabe mais de onde veio tanto destroço de enxurrada.
Passado um mês, estavam os dois no mesmo palanque, rindo abraçados, apoiando o mesmo candidato à presidência, felizes por estarem re-eleitos.

16 agosto 2006

Além do Fim - última parte


[Ascensão, Salvador Dalí, 1958]

Os dias se revelavam entre as claridades que se insinuavam pelas frestas, alternando luas, sóis, nuvens. Compreendia as variações do tempo pela luz e pelo vento que lhe batia no rosto. Se aconchegava no calor que ela lhe oferecia sob o cobertor imundo que a aquecia e aliviava o frio das orelhas dele. O cão, testemunhava à distância o amor e, quando dava, vinha lamber-lhe o rosto sem que ele se incomodasse. Ela, de tão feliz que estava, passou a sorrir na rua e chamou a atenção do policial que lhe seguiu até a alcova. Ao deparar-se com o homem lá deitado, não deu tempo para que ela o carregasse para outro lugar. Passou um rádio para a patrulha e logo apareceu uma ambulância para levá-lo dali perante uma multidão de bêbados que saíram dos bares daquela rua, onde as luzes confundem os sentidos dos desesperados. Ela e seu cão ainda correram e choraram atrás do carro e por pouco não foram atropelados no sol do meio dia, já na avenida cheia de restaurantes logo adiante, onde as pessoas a olhavam com cara de escárnio e nojo. Ele foi levado para um hospital caro e, lá, pessoas bem vestidas apareceram e pareceram reconhecê-lo.
Hoje de manhã, no quarto branco e limpo de um hospital, uma mulher de olhos azuis e gelados surgiu ao seu lado, o que provocou-lhe náuseas. O sorriso que ela lhe deu era transparente e vazio, como um falso amor. Em algum lugar da cidade, deixara para trás sua vida e, em seu silêncio, virou os olhos úmidos para a janela e sorriu: finalmente tinha do que lembrar-se.

14 agosto 2006

Além do Fim - 10ª parte


[O Homem Invisível, Salvador Dalí]
Foi quando o rato já estava para atacar-lhe, rente ao chão, que o cachorro entrou e espantou o bicho. Ela ainda o viu esgueirar-se por um buraco na parede junto ao piso. Ela sabia que aquele lugar não era só dela, mas não compartilharia o seu homem, mesmo que fosse com uma ratazana de esgoto. Com esforço, ela ergueu-o como pode e ofereceu-lhe batatas fritas e frias. Ele comeu devagar enquanto a mirava nos olhos. Ele não lembrava de absolutamente nada que tivesse acontecido antes de estar na calçada, olhando para trás, procurando a porta de onde havia saído. Mesmo assim, inerte que estava, sentiu uma sensação de alívio ao vê-la, que seria impossível expressar, mesmo que tivesse de volta os movimentos e as palavras. Tinha apenas os olhos e deles deixou correr uma lágrima que ela aparou com um beijo. Ela lhe dizia algo, enquanto pegava novamente uma folha de papel e escrevia:

Aqueles sinais embaralhados eram uma ponte que se estendia, além da troca de carícias. O que era três virou a letra E que juntou com a letra A que já descobrira e um pouco mais ele entendeu. A intimidade instalou-se quando seus olhos encontraram o caminho dos lábios e as palavras foram ficando claras, como fica o desejo atrás das pálpebras.

11 agosto 2006

Além do Fim - 9ª parte

[O Primeiro Dia de Primavera, 1922-23, Salvador Dalí]
Antes de amanhecer era a melhor hora para achar comida: os restaurantes e bares, a algumas quadras dali, atulhavam suas lixeiras com fartas porções dos restos que sobravam nas mesas. Ela levantou-se, colocou seus trapos mais sujos, que lhe rendiam as melhores esmolas, esfregou sua cabeleira no chão, olhou para seu homem deitado dormindo ali perto, chamou o cão que lhe lambeu a mão e a acompanhou. Saiu pelo buraco na parede, puxou a lata de lixo para frente da entrada, carregou no ombro o seu saco de ráfia imundo e foi à luta. Lembrou que, agora, havia mais alguém para dar de comer e que deveria mantê-lo bem alimentado. Depois que perdera seu filho na rua, aprendeu a não cheirar loló e fumar uma pedra na mesma noite. Aprendeu também que dói perder alguém. Ela não era uma mulher que chorava a perda de um filho, tinha que sobreviver à dor e principalmente à fome. Andou pela rua com seu cão que volta e meia ia à frente como se fosse um farejador para indicar-lhe onde havia comida. Ele parava em frente às lixeiras e abanava a cauda, como que a convidando para o banquete. Volta e meia alguém se livrava de uma culpa qualquer e lhe atirava uma moeda. Raramente lhe punham na mão. Esse pouco dinheiro servia para qualquer droga que encontrasse ou mesmo para não apanhar da polícia. Mais rápido que de costume, já tinha comida para aquele dia e tinha que voltar ao seu canto, porque seu homem poderia estar precisando dela.

09 agosto 2006

Além do Fim - 8ª parte

[A Persistência da Memória, 1931, Salvador Dalí]
Quando acordou, ele não sabia se havia dormido, quanto tempo havia passado, se havia sonhado, se tudo aquilo não tinha sido fruto um tremendo porre. Por esse motivo, em meio a escuridão, preferiu ficar de olhos fechados, esperando pelo que poderia acontecer-lhe. Lembrou-se de um cão vagabundo, do cheiro de álcool na rua misturado com óleo, de uma mulher sem um dente e de corpo escultural. A dúvida que paira sobre o instante em que se está entre o sonho e o despertar apossou-lhe a mente e ele teve medo.
Foi quando sentiu uma lambida na boca que constatou que tudo aquilo era real. Lá estava o cão no meio do breu a lamber-lhe como se fosse um doce. O que poderia ter sido um sonho, mostrou-se real. Lá estava ele, naquele lugar fétido, olhando a lua que se esgueirava de fresta em fresta, na curiosidade que só a ela é permitida.
Deitado, meio de lado, não se movia e lembrou-se que, no que parecia ser sonho, estava paralizado. Tentou gritar, e se calara. Tentou mexer-se e nada. Pôde sentir a respiração da mulher ali perto. Ao ver o dorso, que na fraca luz do luar parecia uma pintura surrealista que não pertencia àquela tela de abandono, inesperadamente sentiu-se em casa. Acordara-se novamente para o silêncio, mas não lhe cabia divagar sobre o ontem, porque mesmo o passado estava petrificado no tempo e nada mais havia antes da náusea que sentiu deitado no asfalto.

07 agosto 2006

Além do Fim - 7ª parte


[Ainda, Salvador Dalí]

Não hesitou em usar daquele homem a sua disposição: buscou da melhor água que encontrara, diluiu um resto de sabonete que guardava para ocasiões extremas, como quando precisava usar seu corpo para arrumar alguns trocados. Tratou de lavar-se, de banhá-lo e acariciá-lo enquanto esfregava-o por inteiro, ali deitado na penumbra da madrugada, que a lua lhe presenteara enquanto jogava seus raios para dentro daquele lugar.
Mal sabia ele, que seu cérebro comandava músculos involuntários cujo prazer negava a si próprio, mas esbanjada em pulsações para ela. Ela dançou sobre ele, de olhos bem abertos, para não perder nada do homem de pele alva e pêlos negros, que se espalhavam da barba até o pé, formando uma cruz sobre o peito, suando inteiro o gosto do sal do amor, do qual deliciou-se pelo tempo que seu desejo lhe permitiu. Ainda respirava fundo quando lhe deu seu sexo para ele saciar o paladar de seu gozo e sentiu que a língua dele tremia em suas entranhas até fazer-lhe novamente gozar. Do lado, o cão sossegara, fora até a entrada e ficara lá de guarda, como o protetor do amor irremediável. Depois, ela levantou-se, deitou-o novamente e o viu sorrir, entre o suor e os fluidos que lhe deixou pela barba. Nunca havia escolhido alguém para amar, sempre dera em troca de algo e agora tivera um sexo completo de alguém que nada, absolutamente nada poderia dar-lhe em troca, a não ser o tesão do corpo inerte. Ou quase.
A lua, por sua vez espreitava o silêncio e jogava sombras iverossímeis na parede, antes de arrancar de suas peles o brilho suado de corpos que acabaram de arder.

03 agosto 2006

Além do Fim - 6ª parte


[Sonhos da Madrugada, Salvador Dalí, 1923]

Ele, nu, sem entender aquele jogo de letras e números que ela deixara ao alcance de sua visão, fitava o cão, que lhe abanava o rabo. Seus olhos melhor acostumados com a fraca luz que entrava pelos buracos daquele lugar, puderam reparar no vira-latas que lhe servia de guarda. Era de uma cor amarelada, quase laranja, com alguns sinais brancos encardidos no pêlo. A raça indefinida poderia ter algo de labrador, de pastor alemão, talvez até de cocker. Um cão velho, que lhe lambia o rosto e se deitava sobre seu braço caído que formigava. Voltou os olhos para o pedaço de papel pardo tentando decifrar o enigma, que muito bem poderia ser algo de louco, como ela lhe parecia olhar. Aquele quatro poderia ser uma letra A... Ele ainda divagava sobre o sentido que poderia haver naquilo, quando ela voltou com duas garrafas de água, com um sorriso largo, que apesar do dente ausente, era branco. Enquanto lhe falava coisas indecifráveis, foi tirando a sua própria roupa e mostrou um corpo surpreendentemente bem feito, atrás da sujeira que ela agora tratava de remover na água parda que trouxera. Um aroma adocicado surpreendeu-lhe o olfato. Depois, ela montou sobre ele e foi despejando a água, que escorria pelo corpo sem que ele nada sentisse, além da aflição de estar com uma mulher sobre suas carnes sem tato, como se seu corpo pesasse toneladas e não pudesse mover-se. Foi quando a língua dela invadiu sua boca que seus olhos fecharam e caiu num mundo interior, onde ele tinha tentáculos que a envolviam, onde lhe enroscava pela cintura e flutuava num limbo, pleno de estrelas que cintilavam a sua volta. Manteve-os fechados e deixou que sua boca fosse o seu céu e entregou-se a mulher que lhe acariciava as orelhas e lhe engolia inteiro. Sentiu que o suor lhe escorria da cabeça e se misturava a saliva. Sentiu o gosto do sexo que ela lhe trazia a boca, sentiu que alguma maneira ele lhe correspondia ao desejo frenético que não tinha chão, nem teto, nem tato, nem tino.

01 agosto 2006

Além do Fim - 5ª parte



Segunda Dimensão, Salvador Dalí

Ela não podia crer naquilo. Um homem bonito, que apesar de estar com a roupa suja, se via não serem roupas velhas. Como poderia ter chegado àquele ponto? Um bêbado caído na sarjeta, recolhido por uma mendiga que vivia de pequenos furtos com seu cão velho, que só servia para dormir e andar com ela pelas lixeiras. Um homem que não falava, comia bem, cagava bem e não movia nada além dos olhos. Depois daquela sujeira toda, pegou uma camiseta velha de propaganda política que tinha e limpou a merda toda. Pôde ver o homem nu, pois a cueca que lhe tirou já não servia pra mais nada. Viu o corpo inerte, porém bem feito, com um cacete bem grande que lhe deu um arrepio entre as pernas. Porém, daquele outro bêbado caído sobre um monte de pêlos mijados era natural que nada pudesse esperar. Mesmo assim, longe dos olhos dele, aproveitou para pegar-lhe com a mão, apertar-lhe e sentir o peso de suas bolas, coisa que nunca pôde fazer quando dava para homens que lhe dessem o prazer da droga. Limpou-o dentro do possível, derramou da água, esfregou e pensou que talvez esse homem mudo, inerte e bonito pudesse servir para alguma coisa. Antes de sair, escreveu-lhe:


27 julho 2006

Além do Fim - 4ª parte

Ela olhava para aquele homem, o primeiro a entrar naquele buraco em que ela vivia. Não trazia homens para lá. Já apanhara muito na rua, já fora explorada, já se dera por uma pedra, até por cigarro, mas nunca deixara qualquer um deles entrar. Seu cão, que lhe acompanhava desde que se encontraram catando o mesmo lixo, era sua única companhia. Teve uma vez um bebê, que nasceu ali mesmo e que carregou por algum tempo pela rua. Numa noite, numa praça, louca por ter cheirado loló e fumado uma pedra, esqueceu-se dele e nunca mais o encontrou. Sorte dele. Quando trouxe de arrasto o homem para dentro daquele lugar nojento que lhe servia de abrigo no frio e na chuva, era como se tivesse encontrado sua criança e quisesse cuidá-la. Deve ter quebrado o pescoço, pensou ela, baseada no que aprendera em tantos atropelamentos e saques que presenciara. Estava bêbado, não tinha dúvida e só não morrera afogado no seu vômito porque ela sabia que um bebê se deita de lado e assim o pusera sobre umas caixas de papelão que recém recolhera na rua. Procurou em alguns lixos e encontrou alguns restos de comida. Estava arrumado o café da manhã de sua pensão, pensou ela. Voltou para ver como ele estava, dar-lhe algo de comer e alimentar seu cão. Escreveria alguma coisa para ele. Ela sabia pouco de escritas, mas gostava de rimas e se distraia com as poucas letras que conhecia. Talvez ele compreendesse porque tinha os olhos mais brilhantes que já vira. Com muito esforço ela o escorou contra um cobertor velho e apoiou sua cabeça na caixa onde ela guardava seus achados mais preciosos: revistas coloridas, brinquedos, algumas peças de roupa para os dias mais frios, folhas de papel e canetas. Assim, meio deitado, meio sentado, ela lhe enfiou na boca um pedaço de pizza frio, que ele devorou.
Ele sentia dor na cabeça, talvez estivesse machucado. Fome ele tinha, mas era diferente. Não havia a sensação do estômago, era de outro jeito: era como se fosse uma chance de viver. Ela tinha uma velha garrafa de refrigerante com uma água turva, que acomodou em seus lábios até que ele bebesse. Ela tomou da mesma garrafa, comeu da mesma pizza, assim como o cão lambedor. Queria dizer-lhe algo, mas não conseguia articular palavras, tampouco entender o que ela dizia. Ela pareceu entender que ele nada entendia. Talvez fosse estrangeiro, talvez surdo, talvez mal-educado. De estômago satisfeito, passou a perceber os odores, como se lhe restasse apenas esses sentidos: a visão de um lugar escuro onde uma mendiga lhe acolhia, o paladar de uma pizza bolorenta e o olfato de mofo, mijo e excremento. Pôde ler nos lábios dela um palavrão bem silábico e ela começou a limpar-lhe sem cerimônia. Teve certeza agora que estava nu, cagava e mijava sem controle, mas tinha alguém lhe cuidando. Por instantes o cão parou de lamber-lhe.