28 outubro 2005

Fronteiras da Miséria


Você, em sua casa, tal qual um nobre em seu castelo, se cerca de grades, alarmes e trancas. Quer deixar de fora o que lhe afronta, o que lhe amedronta, o que lhe tira o sono. No seu bairro, ajardinado e limpo, desconfia de todos que nele cruzam, até do gari que ali trabalha e do catador que “limpa” o seu lixo.

O Brasil vasculha, em porões de navios que passaram pela África, os desterrados de hoje e encontra, em galpões imundos, pobres bolivianos e paraguaios, trancafiados feito bichos, presos a dívidas, sem documentos e sem honra, trabalhando para seus donos por um prato imundo de comida.

Na fronteira entre os ricos do norte e os miseráveis do sul, como uma arquibancada prestes a ruir, hordas anônimas esperam o momento de invadir o “american way fo live”. Pelos rios, desertos e pelo mar, em barcos, caminhões ou qualquer coisa que flutue, latinos invadem o reino do Tio Sam, para trabalhar por algumas verdinhas indecentes, em serviços que os próprios americanos se recusam a operar.

Na Europa, penitenciárias em aeroportos na Holanda e hotéis na França, ardem com carvão humano, em fogueiras nazistas. Povos vindos da África para servir a nobreza mofada, ou vindos da velha cortina enferrujada, fugindo da falência de um sonho comunista.

E você, através do olho mágico de sua porta trancafiada por ferrolhos e aparatos eletrônicos, se julga protegido. Vã ilusão...

Entre Aids, guerrilhas, porões e galpões, a miséria se multiplica sem que ninguém faça nada e mais cedo ou mais tarde, não haverá fronteiras. Em busca da água, alimento e de um futuro digno, tudo ruirá. Se ficarmos assistindo, ignorantes em nossos castelos de areia, assistiremos a queda dessa civilização do medo, onde a escravidão só mudou de ares; onde milhões de pessoas se submetem a uma vida miserável, enquanto uma minoria engorda, de tanto comer o que não digere, para depois gastar seu dinheiro para restaurar a falácia juvenil que vende cosméticos, dietéticos e cirurgias milagrosas que não corrige a flacidez de suas almas.

24 outubro 2005

O Outro Lado da Moeda


Em cada encontro buscamos o novo, mas o que fazemos para transformar velhos erros em novas chances?
"Além do horizonte, existe um lugar, bonito e tranquilo, prá gente se amar". Na realidade, além do horizonte, existe Angola...
Clique aqui e reflita sobre todas as diferenças que levam ao caos.

04 outubro 2005

Águas


Por muito tempo olhei o lago, encantado com sua imensidão. Parecia profundo, oculto em sua superfície calma e aconchegante, manso como uma montanha distante. Costumava passar noites olhando as pessoas banhando-se entre risos e sussurros, outras em nado agitado, que turvava sua cor de um verde profundo feito floresta fria que margeia cordilheiras.
Meu primeiro mergulho foi quase solitário. Atirei-me na água assim que um olhar curioso me arrebatou nas matas. E lá fiquei esperando. Enquanto aguardava, nadei por algum tempo para sentir o gosto e assim descobri que pode ter muitos sabores. A cor, que de fora era selvagem, me pareceu tinta fresca de um quadro de Monet, de pinceladas largas e de combinações inusitadas.
Por lá fiquei muito tempo, até ver aqueles pés, de quem sentada no trapiche, lambiscava a água com a suavidade alva de sua pele. Bastaram-me aqueles pés para transformar toda aquela serenidade em turbilhão. E nadei feliz, respingando, jogando prá cima e querendo molhar a todos que por mim passavam. Ela nunca mergulhou completa e deliciei-me com seu corpo separado de sua alma, que tinha em mira outras águas, mais distantes e obscuras. Saí do lago, me sequei rapidamente e fiquei ao sol.
Por algum tempo, procurei águas mais rasas, que não me molhassem plenamente, porque precisava estar pronto para quando chegasse ao mar. Houve poços, poças, ancoradouros e represas, mas eu queria o mar.
Como criança que em viagem de férias anseia ver o mar e quando o encontra se surpreende, fiquei de olhos vidrados no horizonte. E ele veio a mim, imenso, rugindo, verde jade e não tive dúvidas que o encontrara. Ela estava na praia e me acompanhou num salto rápido. Conhecemos todas as profundezas que aquele oceano sem fim nos oferecia. Entregues, longe do litoral, nadamos, rimos, compartilhamos cada recife, cada atol, cada coral, cada tempestade. Mas o mar se tornou bravio, temporais constantes, ciclones, furacões nos arremessavam longe e eu a buscava, a socorria, dava-lhe ar aos pulmões e podíamos assim nadar mais e mais. Até que um maremoto nos separou e a água me pareceu triste demais para continuar nela.
Restei-me ao longo da costa por um tempo, apreciando aquelas ondas que ainda me faziam arrepiar à noite. Ali dormi por um dia inteiro, olhando a arrebentação, procurando além, a calmaria.
Ainda tinha o sal nas minhas costas, quando me chamaram atrás e vi um rio, despencando montanha abaixo, que ao juntar-se ao mar parecia uma enseada tropical, com palmeiras verdejantes e areia cristalina. Entre ficar mirando o mar e ousar subir o rio, me atirei na correnteza e nadei com a ânsia de quem quer encontrar o curso definitivo. A cada curva que conhecia, aquela torrente era mais forte e me forçava para lados que eu não queria ir. Eram águas possessivas que, porém, em suas profundezas mostrava-se mansa e carente de meus olhos. Fiquei muito tempo braceando, querendo trazer à tona as águas que me atraiam, mas as marolas da superfície eram na verdade redemoinhos que teimavam em me afogar. Quando o rio saiu de se curso e começou a inundar as matas que eu tanto apreciava, e antes que arrebentassem todas as margens, saí e procurei abrigo na minha própria sombra.
Quando o tudo parecia acalmar-se novamente, feito a calma que segue as enchentes, sem que outra fonte me saciasse, aproximei-me com cuidado e molhei meu pé. Feito papel, aquela água foi subindo em mim e me puxou para seus disfarçados sumidouros. Ao julgar-se possuidora de meus gestos, tive tempo de segurar-me no primeiro galho que avistei na encosta e subi.
Não quero mais essa água traiçoeira. Quero o delírio em ribanceiras e a tranqüilidade perene dos lagos acolhedores que repousam dentro de mim. Ficarei aqui, no alto da montanha, onde a vista é larga e procurarei uma nova estação de chuvas, que encherá os vales vazios e os pântanos rachados do sol.
Vou viajar em barcos, com velas largas, feito Magalhães circundando mares temerosos, mas com a alma intacta de águas insalubres. Quero encontrar um porto, onde soltarei minha âncora, sem importar-me se é rio, lago ou mar, mas que seja calmo, tranqüilo e só se revolte para me convidar a saltos em trampolins e não mais em pranchas de navios piratas.