19 novembro 2007

Outro lugar fora de mim - parte 4


De certa forma a saída da empresa foi frustrante. Imaginou que tentariam lhe fazer alguma proposta que mudasse seus planos, ou que perguntariam sobre seu futuro. O que ouviu de seu chefe é que ele já havia notado um certo desinteresse de sua parte pelo trabalho. Liberou-lhe na mesma hora, sem nem mesmo passar as tarefas para algum colega. Voltou a sua mesa, recolheu alguns pertences, transferiu alguns arquivos para o provedor particular, deletou algumas informações do PC e, antes mesmo de despedir-se dos colegas, seu chefe voltou à mesa num sorriso e pediu-lhe a carteira do convênio médico com um sorriso tão frio como o que dá a faxineira quando ela pede para limpar o seu lixo.
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Quis ligar para sua família para comunicar sua decisão e que não deveriam mais ligar para a empresa, porém a senha do telefone de sua mesa acabara de ser bloqueada. Despediu-se um a um e, na porta do grande salão onde as mesas alinhadas como um engradado estavam espalhadas, quis acenar para todos numa despedida. Em vão. Todos já estavam novamente envolvidos em emails, telefonemas, cafezinho ou, alguns, em conversas reservadas sabe-se lá sobre o quê.

Saiu do prédio, disse adeus ao porteiro, que ficou desconfiado da simpatia explícita, tão incomum nas grandes cidades.

Quando estava na rua, a uma quadra do mar, não resistiu e foi até lá. O tempo estava nublado e uma garoa disfarçava o Rio de São Paulo. Não. Hoje não era dia de nostalgias ou depressão. Tinha muito a fazer. Passou numa loja ali perto, comprou mais uma mala para juntar as que já tinha em casa, fechadas. Com a mala vazia, tomou um táxi e foi para seu apartamento. Talvez ainda conseguisse cancelar o contrato de aluguel, haja visto que recém o alugara desde que Lenice lhe deu um ponta-pé na bunda.

Sexta-feira era o vôo. Se fosse antes, melhor. Não tinha mais o que fazer por ali.

-continua-

parte 1

parte 2

parte 3

parte 5

parte 6

imagem daqui



14 novembro 2007

Outro lugar fora de mim - parte 3


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- Alô? Boa noite, Dona Ester... Sim, sou eu, Eduardo... Tarde? Nem reparei... Desculpe. Lenice está? Não?... Que pena, precisava falar com ela... Ela volta que horas?... Viajando?... Paris? como Paris, ela morria de medo de de avião... Nem a Porto Seguro quis ir comigo!... Navio? Como, navio?... Transatlântico? Existe ainda?... Lua-de-mel?... Não, Dona Ester, nada importante. Desculpe acordar-lhe a essa hora.
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A noite foi longa. Não era um sentimento de perda que lhe abalava. Era mais, era misericórdia de si próprio. Não a amava ao ponto de chorar uma paixão perdida. Seu sentimento era de traição. Não no sentido de amor traído: era de não conhecer a pessoa com quem convivera por três anos. Nunca falaram em casar, embora já morassem praticamente juntos desde fevereiro retrasado. No carnaval, ela veio passar a noite no seu antigo apartamento em Ipanema e foi ficando. Quando viu, passou o tempo, já haviam se mudado para outro maior "onde ela pudesse ter seu estúdio". E, há duas semanas, ela o jogou porta a fora. Até sentiu-se aliviado, ele nunca faria isso e acabaria passando anos com ela sem dar-se conta. E ela, que nem de avião andava, estava agora trepando com outro em alto mar, rumo à Paris.

A manhã já se aproximava, e entre as caixas que nem havia aberto ainda, encontrou a sua carteira profissional. A mala de roupas de inverno nem seria aberta. Naquela manhã ainda, pediria demissão em caráter irrevogável. Na semana seguinte embarcaria para Nova Iorque. E se visse algum grande navio lá do alto, gritaria a todo pulmão que Lenice roncava, que seus quadros eram medíocres e que... e que... Poxa, Lenice, há quanto tempo você já dormia com esse cara?
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-continua-

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06 novembro 2007

Outro lugar fora de mim - parte 2


A semana passou correndo. Ultimamente, os fins de semana lhe pareciam longos e os dias de trabalho eram curtos demais. Logo estaria novamente sozinho em casa com saudades não sabia nem de quê.
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Na sexta-feira, antes de sair do trabalho, entrou a mensagem. Sim, seu currículum fora aprovado: "There is a job available matching to your skills", dizia em negrito.
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Nova Iorque. Preferia o Vale do Silício, Vancouver, Salt Lake City... Nova Iorque... Por quê não?
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Olhou no fundo da gaveta e lá estava seu passaporte. A viagem de trabalho de dois anos atrás a Miami para trazer aqueles chips indianos tinha servido para alguma coisa.
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Pensou em ligar para a ex-namorada. Talvez parecesse um ultimato. Diria que se ela não voltasse para ele, iria embora, que estava tudo arranjado... De quê adiantaria, pensou, ela tinha outro... mesmo assim ligaria à noite. Não que morresse de amor por ela, não por ela ter jogado seus planos escada abaixo, com sua escova de dentes, CD's, livros e até o anel de família que sua mãe tivera a audácia de dar-lhe quando esteve no Rio.
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There is a job available, leu de novo...
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Lenice, vou embora do Brasil... não adianta pedir... não, Lenice, agora é tarde... como Lenice? Quer voltar? Mas, agora... Como ir junto? Ah, Lenice... Tinha tudo planejado. Ligaria às dez. Assim ela não dormiria e passaria a noite pensando nele. Perfeito! Maquiavel reviraria no túmulo.

- continua -
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