29 setembro 2006

A Olho Nu - 4ª parte

Crescemos numa fazenda de muitos cheiros. Tínhamos algumas cabeças de gado, galinhas com penas de texturas diferentes, duas ovelhas, e alguns porcos que ficavam mais distante da casa, porém me serviam de orientação quando eu andava pelo pátio.
Ah, havia ainda a Dona Francisca, que ajudava nos afazeres domésticos e me ensinou os sabores mais deliciosos que eu posso lembrar. Uma amiga de minha mãe, certa vez, comentou que a Tia Chica, como a chamávamos, era uma negra muito simpática. Mais tarde minha mãe me explicou o que era negra: era alguém que tem pele como a noite. Até hoje, ao passear pela madrugada, sinto os aromas e os gestos suaves da Tia Chica a me guiarem.

28 setembro 2006

A Olho Nu - 3ª parte


Minha irmã era dois anos mais nova que eu, acho que já disse isso. Além de vomitar, ela também gostava de esconder alguns brinquedos. Como ela os, era covardia, porém me ensinou a descobrir outros jeitos de desvendar mistérios: imagino que ver seja uma sensação como um toque antes dele mesmo. Apesar dessa aparente desvantagem, eu me safava melhor quando aprontávamos alguma arte, porque ouvia os passos de mamãe muito antes dela. Minha perspectiva era dada pelos sons e movimentos, feito radar. Foco é outra palavra que associo aos sons que percebo de formas diferentes nos dois ouvidos.

26 setembro 2006

A Olho Nu - 2ª parte

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A recordação que trago de minha mãe é a mão áspera, porém carinhosa. Lembro também da sua respiração junto a mim, quando nas tardes chuvosas de inverno me punha com ela e minha irmã na cama para desfrutarmos o calor do acolchoado de penas que tínhamos lá em casa. De meu pai guardo a voz grave e pausada que herdei, que me explicava as paisagens que nunca vi. Lembro dele caprichosamente moldando argila, criando cenários de superfícies e inclinações para explicar como era linda a montanha que havia atrás de nossa casa. Depois andávamos pelo pasto e ele me dizia que eu deveria imaginar o relevo que ele me mostrou e multiplicar por muitas vezes e aí saberia como era. Quando um dia ele me levou até o alto e pude sentir o ar gelado que lá batia, me senti no topo de suas rústicas maquetes e tive a noção de quão pequeno somos no mundo e o quanto havia por descobrir.

25 setembro 2006

A Olho Nu - 1ª parte


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Minha primeira lembrança da infância é o cheiro de vômito de leite de minha irmã mais nova. Acho que eu tinha uns três anos de idade e minha mãe a colocava na mesma cama que eu. Ela tinha, na época, um ano e meio. Quando conto isso a alguém acham estranho, mas minhas sensações são diferentes de maioria, porque, segundo eles, eu não enxergo.
Nunca tive a sensação da visão e por isso não sinto falta. O mundo é composto de aromas, sons, sabores e texturas. Nem tente me explicar como é ver, porque não tenho absolutamente qualquer possibilidade de imaginar o que seja.

22 setembro 2006

Súbito


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No primeiro segundo, ela olha para trás e vê ainda seu pé descolar-se do parapeito e se orgulha da vontade que ultrapassa a razão e lhe joga à morte, para no instante seguinte, lembrar-se dele sorrindo suado ao encontrá-lo em sua cama com sua filha e sente raiva do cafajeste que trouxe para sua casa e, ao terceiro segundo, sente o ar bater-lhe nos cabelos já grisalhos e mal tingidos pelo desgosto que os remédios já não aplacavam mais, até que no quarto segundo lembrou de seu filho morto ainda criança a mamar-lhe o peito e afagar-lhe o queixo, para depois, no quinto segundo, sentir um medo do nada que viria já que se desapegou das crenças, há muito tempo e, no sexto segundo, lembrou-se da mãe há tanto tempo morta e de seu pai caído bêbado na sarjeta e já estava no sétimo segundo quando seu sexo latejou como se uma nesga de prazer perpetrasse o ar e lhe lembrasse o último desejo que sua carne lhe deu e mergulhou no oitavo segundo em que quis acreditar em anjos que a resgatassem para ver um último pôr de sol, antes de estatelar-se na calçada no segundo final.

19 setembro 2006

Fala, Matilde - última parte


Flores, Fernando Botero

Ontem de manhã foi o enterro de Dona Matilde. Segundo o laudo médico, morreu de asfixia provocada provavelmente por algum travesseiro. A polícia entendeu que coisas assim acontecem com quem não consegue cuidar de suas mais primárias necessidades, porém dentro da família havia sentimentos contraditórios. Alguns choravam pela mãe amada, que estivera tanto tempo presente e alegrara suas vidas até àqueles últimos meses catastróficos; outros olhavam suas anotações vagas - numa até havia a palavra PUTA em letras garrafais - e choravam compulsivamente; os últimos, aliviados pelos sigilos que agora poderiam descansar no túmulo, eram mais comedidos e por trás de lágrimas sociais disfarçavam suspiros incontidos.
Porém, segredos não morrem e, quem sabe, algum dia, voltem à tona quando eles próprios chegarem à idade da destruição de mistérios que Dona Matilde presenciou. O que poderá vir à superfície, quem viver verá, para mais tarde soltar os seus, que poderão ser motivos de riso, choro, espanto ou redenção.

14 setembro 2006

Fala, Matilde - 7ª parte

Dançarinos, Fernando Botero

Depois do último episódio da conta fantasma na Suíça, a visitação à querida avó aumentou consideravelmente. Ela passou a ser convidada para jantares em sua homenagem em todas as casas da família, onde todos acorriam com muita presteza. Foi no aniversário de Agnaldo, o único filho homem, hoje viúvo, que todos se sentaram ao redor de Dona Matilde, como quem espera um golpe de sorte. Quem sabe ela teria novamente outro flash com informações mais precisas sobre a conta? Estavam todos conversando, mas com um papel e caneta sempre a espera. Foi exatamente quando Betinha foi buscar uma garrafa de champagne que trouxera consigo de São Petersburgo, que Dona Matilde fuzilou:
- A Betinha é atriz de filme pornô.
Quando ela voltou à sala, sem que tivesse ouvido o relato seco de sua mãe adorada, todos a esperavam de boca entreaberta. A irmã cutucou seu marido e o convidou para irem-se embora, as sobrinhas queriam saber mais de sua carreira e os primos correram para a Internet.

11 setembro 2006

Fala, Matilde - 6ª parte

Sobre a Sacada, Fernando Botero

De surpresa, como só artistas sabem fazer, a filha mais nova de Dona Matilde chegou. Elisabete, a Betinha de casa, agora conhecida como Kurvana Belina no cinema russo. Ela deveria estar pelos quarenta e cinco anos, embora há alguns anos esteja afirmando ter trinta e quatro. Sua presença despertava a curiosidade das sobrinhas e olhares incestuosos dos cunhados e sobrinhos. Veio para ver sua adorada mãe, que sempre a apoiara em sua carreira, desde que fugira de casa com um circo esloveno, tendo ganhado o mundo e fama no exterior. Até hoje, ninguém viu nenhum filme dela no circuito comercial, ao que ela responde que só atua no cinema cult da Rússia.
A família, em menos de duas horas, se reuniu na grande sala da casa de Dona Matilde, prepararam um jantar de cinema e trouxeram dona Matilde para a mesa. Quando todos estavam sentados, Betinha fez uma manifestação de apoio à mãe enferma e de agradecimento por reunir a família. Foi no meio do discurso emocionado, que a vovó voltou a atacar:
- A senha da conta no banco suíço é 63496BGWEY37AQ.
De um silêncio contemplativo inicial, houve um alvoroço por canetas, que chegaram atrasadas para o resquício de memória imediata de todos. Dona Matilde ainda levantou-se, bateu palmas e mijou-se.

07 setembro 2006

Fala, Matilde - 5ª parte

Madre Superior, Fernando Botero

- O que eu mais gostava era de comer a prima Eulália!
Estavam justamente no quarto, Alzira, a filha que levara a mãe à consulta onde o Mal de Alzheimer havia sido diagnosticado, seu marido Norberto e o seu filho mais velho, Genivaldo Neto, que, embora fosse o candidato mais provável à herança política do deputado, era visivelmente efeminado, isso para não dizer que seu armário já tornara-se pequeno para seus instintos. Geninho, como a mãe o chamava, comoveu-se com a declaração da avó, chorou entre risos de cumplicidade e disse:
- Papai, mamãe, eu sou gay! - e abraçou-se emocionado na mãe e no pai, sob os olhos distantes da avó.
Dr. Norberto ficou estático perante aquela singela declaração e viu confirmar-se suas suspeitas tantas vezes sufocada. Dona Alzira, ao contrário, abraçou demoradamente o filho que finalmente assumira sua condição sexual, com a ajuda fortuita de uma vó catatônica. Durante aquele abraço de compreensão para eles e de perplexidade do pai, olharam para a avó demoradamente, até que a filha indagou:
- Mamãe?! A Tia Eulália não é a falecida Irmã Consolação?

04 setembro 2006

Fala, Matilde - 4ª parte


Cigarros, Fernando Botero


- O Genivaldo ganhou propina na venda da Central Elétrica.
A família começou a temer levar a matriarca para locais públicos, mas não teve como evitar que ela estivesse presente no enterro da filha Joice. E justamente quando descia o caixão, entre choros comovidos dos filhos, noras e netos, que Dona Matilde resolveu manchar de vez o nome e a reputação do seu falecido Genivaldo, o deputado que tanto orgulho trouxe à cidade. O viúvo, ex-prefeito e braço direito do deputado, não conteve a ira e gritou:
- Será que não dá para calar a boca dessa velha?
A irmã e o irmão da mais nova falecida da família, protestaram pelo desrespeito, mas em voz baixa, porque também estavam agora ofendidos. Resolveram então que, a partir daquele dia, Dona Matilde ficaria apenas em casa, no máximo um banho sol de uma hora por dia.