26 janeiro 2007

Desce? - 4

Keith Haring - grafitti


Na saída da esteticista, olha a priminha que pode lhe dar algum lucro. Basta investir em mais uns detalhes e com quinze ou dezesseis ela já terá ótimos clientes, quem sabe grandes executivos que pagarão muito dinheiro para tê-la em suas camas. Por enquanto ela a trata como uma menina gosta de ser tratada e, aos poucos, vai mostrar-lhe o submundo onde um belo corpo faz fortuna àqueles que sabem explorá-los. Ao telefone com seu cafetão, disfarça um namoro e espia a menina de soslaio. Chega o mesmo elevador que há sete anos lhe traz até ali para reparar os danos que drogas e álcool consomem. Continua disfarçadamente tratando o programa da noite quando a porta se fecha. Ao seu lado uma senhora do tipo puritano e ingênuo como as mulheres dos seus clientes; atrás, um garoto que não lhe tira os olhos, mas de onde não é capaz de sair um tostão furado. A medida que desce, vai chegando mais gente, até um homem gordo, daqueles que dão trabalho na cama, quase matam sufocadas e ainda dão pouco prazer pela massa de gordura que avança entre a barriga e seus membros afundados, assados de tanto roçar nas pelancas acumuladas. O nojo só é esquecido na hora de cobrar peso de ouro, o equivalente ao que a balança sofre sob seus pés nos banheiros de suas casas perante o olhar assustado de suas mulheres. Ainda ao telefone, vê entrar dois rapazes apressados. Não parecem ser clientes típicos mas algo lhe diz que há dinheiro na parada, ainda mais depois que não deixaram entrar mais ninguém... Desliga o celular pouco antes de faltar luz e o elevador parar.

19 janeiro 2007

Desce? - 3

Picasso - cubismo


Ser a prima mais nova tem suas vantagens. Há tanto para aprender nesse mundo e ter alguém para lhe guiar é o máximo, diz a garota de catorze anos, segurando o celular e falando com uma amiga de escola, tal qual a prima ao seu lado falando com o namorado. Em frente ao elevador, fala e olha para ela, tentando imitar inconscientemente até o seu jeito de apertar o botão. Saíram a pouco da esteticista que sua prima lhe indicou e a acompanhou. Tem que tirar essas espinhas, ensinava a prima mais velha e ela não tinha dúvidas disso. Chega o elevador e entram como se levassem juntos seus interlocutores nos telefones. Ela se despede da colega e desliga, procurando na parede o sinalizador de andar, que não existe, apenas os botões antigos, onde ela procura e aperta o T. Vê uma senhora idosa, com rosto assustado a tentar equilibrar-se nas sacudidas que vêm depois de fechar a porta. De súbito arranca, mas vai lentamente se deslocando para baixo. Sua prima está tão animada ao telefone, que chega a sentir ciúmes ao ver-se só, mesmo com ela. Em seguida a porta se abre para a entrada de um senhor enorme, de terno, carregando uma pasta, que parece ser de vendedor, quem sabe um daqueles que estão sempre nos consultórios dos médicos, furando filas. Ela recua um pouco para que ele acomode-se melhor, pois quase fica com a pasta presa na porta, o que seria hilário. Mais adiante pára de novo e entram dois rapazes. Ela nota que sua prima força a despedida ao telefone com o namorado, para mostrar-se disponível. Ela conhecia o jeito como ela ajeitava o cabelo e logo aprenderia muito bem como fazer igual. Os dois homens estão falando entre si e parecem com pressa. Nem notaram a prima!, pensa ela surpresa. Em seguida, a porta volta a abrir-se e nota que atrás há alguém que não tinha visto antes, de óculos de sol. Acha engraçado. Acho engraçado o fato dela achar tudo engraçado. Ia comentar algo com a prima quando a porta se abre e os dois rapazes a fecham avisando que está lotado, o que não chega a ser verdade. Há algo de errado com o nervosismo deles, conclui justo no instante que falta luz e o elevador tranca. Escuta a senhora se benzendo e agarra-se ao braço da prima.

16 janeiro 2007

Desce? - 2

Le Portugais - Braque - cubismo


Saindo da consulta médica, com sua receita numa mão, tenta abrir a bolsa e segurar a sombrinha ao mesmo tempo. Aperta um dos botões que há em frente ao elevador e se pergunta para quê dois botões. A porta se abre e dentro apenas um rapazote, que nem de longe lembra o ascensorista que fora seu primo em idos tempos, que até aposentar-se usava um uniforme bem engomado. Pergunta-lhe se está descendo e pelo resmungo do rapaz compreende que sim. A porta se fecha num susto e começa uma descida tão barulhenta quanto lenta. Antes que ela pudesse segurar-se, ele pára no andar seguinte. Ela se segura na parede, batendo com a sombrinha. Entram duas meninas, que falam e riem nos seus telefones de mão. Para ela, mais um aparelho para complicar a vida, cheio de botões, que acabaram por desempregar as telefonistas de seu tempo. Fecha-se a porta novamente e continua a viagem, até parar no que deve ser mais abaixo, com a mesma força de abrir e fechar a porta, contrastando com a lentidão do movimento de descida. Assusta-se ao ver o tamanho do homem que entra e faz movimentar o fundo da caixa, onde ela se vê espremida. Pede proteção divina e a porta é cerrada, quase deixando de fora parte do homem que segura uma pasta de agente funerário. O menino que deveria estar cuidando da porta, agora está de óculos de sol. Pensa que talvez seja um pobre cego que conseguiu uma ocupação e sente pena dele, atrás daqueles óculos e do aparelho de surdez que agora nota em seus ouvidos. Abana-se como pode e o elevador pára novamente para a entrada de dois bonitos rapazes que conversam alto, parecendo nervosos. Os jovens tem pressa, lembra ela. Firme na parede lateral, onde agora apóia a bolsa, calcula que devem faltar mais alguns andares para terminar seu martírio, quando de repente o motor pára e a luz se apaga. Benze-se no escuro, porque ali, só Deus vê. Numa fração de segundo se solidariza ao rapaz cego que dirige o ascensor. Vai ter que avisá-lo, pois ele não deve ter notado que estão no escuro.

12 janeiro 2007

Desce? - 1


Braque - cubismo



Décimo oitavo andar, o último. Prédios antigos não deveriam ser tão altos, pensava enquanto ajeitava os documentos que teria que entregar. O velho elevador pára, saem as últimas pessoas se abanando e ele entra ali solitário. Num solavanco, começa a descida e logo pára no andar inferior. Entra uma senhora que lhe pergunta “desce?”, a que ele acena com a cabeça que sim. A porta fecha rapidamente dando a falsa sensação que algo muito rápido está para acontecer, porém retoma sua descida preguiçosa. Mais dois andares, nova parada. A velha senhora se segura na parede para deter sua queda, tal a sacudida que dá. Tão logo se equilibra faz o sinal da cruz e a porta se abre para a entrada de duas mulheres que falam ao celular. Uma delas continua a conversa quando a porta se fecha no mesmo susto de antes para a senhora. O rapaz olha para as duas jovens, avalia-as de cima a baixo e põe o fone no ouvido e os óculos de sol, como se elas tivessem iluminado a velha caixa descendente. Dedilha na parede de trás o rap que escuta no MP3 player. Três andares sem parar, até que, em leve desnível, pára novamente para a entrada de um homem gordo com uma pasta executivo na mão, sob o olhar assustado da senhora idosa, que mais uma vez se benze. As meninas dão lugar para o espaçoso senhor, que por pouco não é atingido pela força da porta que se fecha. Décimo andar, dois homens suados entram rapidamente e apertam o botão de fechar. Falam-se aos cochichos como se ninguém pudesse ouvi-los. O rapaz com o fone no ouvido não se interessa na conversa e continua a olhar por trás dos óculos escuros as duas garotas. Avalia que uma deve ter uns dezesseis e a outra já é meio velha, talvez uns vinte, idade avançada para seus dezessete recém completados. Descem mais dois e o calor começa a incomodar. Nova parada, ainda havia espaço para mais duas ou três pessoas, porém os dois rapazes assumem o botão de comando da porta e avisam que está lotado para o casal de idosos que queria entrar. O elevador pára entre o sétimo e o sexto andar bruscamente e as luzes se apagam.

05 janeiro 2007

Amnésia virtual - 4

Imagem daqui

Lembraram-se muitos, que havia o risco de perderem suas fotos, ou por não imprimi-las ou por salvá-las em locais impróprios, ou até mesmo de imprimi-las em qualquer papel. O que não sabiam é que a fotografia verdadeira, não se transformava em bites e bytes. Além da memória que a retina guardara, não havia mais nada que pudesse trazer de volta a doçura congelada no tempo, o instante que o saudoso clique ocorria quando alguém sorrindo dizia: Olha o passarinho – figura lendária de um animal alado e orgânico que habitava o planeta na época em que havia árvores naturais ao invés de conversores eólicos de oxigênio.

03 janeiro 2007

Amnésia virtual - 3



Dez anos da memória digital desaparecera, desde que pararam de fabricar os filmes fotográficos. Crianças nasceram, foram batizadas, comeram a primeira papinha, caminharam, foram à escola, abraçaram seus amigos que nunca mais viram e nada mais restava além de lembranças.
O velho fotógrafo da praça, que muitos chamavam de “retrógrafo” lambe-lambe, que resistira até 2009 com seu estoque de filmes, ficara rico da noite para o dia, vendendo imagens guardadas em celulóides; os fotógrafos de praia, com seus cavalinhos e carrocinhas passaram a ser assediados e foram obrigados a esconder seus velhos baús de imagens um dia fotografadas e não pagas na hora que apresentavam a cobrança; os
artistas que faziam seus trabalhos em latas furadas, passaram a ser homenageados em cerimônias transmitidas em tempo real pela hipertela.