31 outubro 2006

Laboratório Literário - final

São Paulo, 31/10/2006, névoa, 21ºC

Do alto do Anhangabaú, fumando se cigarro, ela relembrava seus últimos dias, com a sensação de tristeza e liberdade. Na noite que o encontrou na casa de seus pais, não era ele o mesmo homem que frequentava suas saudades, aquele que deixara em casa com seu filho há exatos dez anos atrás, na manhã do acidente. Agora, era um homem taciturno, amargo e distante. Ele contou-lhe de como havia saído da casa para comprar o leite, deixando seu filho dormindo por alguns instantes e o que sucedera-se nos minutos seguintes. Criou um vazio mental de dois anos, que só foi reacendido ao ser encontrado pelo pai mendigando pelas ruas. Foi reconstruindo suas lembranças, onde ela fazia parte das feridas, por isso nunca quis procurá-la. Ela escutou com amargura, lembrou do peso da morte que havia sentido por ele, lembrou da fuga obscura que procurou nas drogas e na bebida, lembrou do filho carbonizado, lembrou do adeus que nunca foi dado. Após visitarem o túmulo, juntos e distantes, ele passou a falar da indenização que poderia receber pela morte do filho e dele próprio, haja visto que fora dado como morto. Antes de vomitar, ela apenas pediu que lhe desse alguns trocados e que ela teria que voltar outro dia. Ele deu-lhe cem reais e ela se foi, sem que ele perguntasse qualquer coisa sobre sua vida.
Olhando de cima daquele lugar, inangurou seu primeiro dia de vida após dez anos, ao jogar seu cigarro no viaduto e ver o ônibus que passava estraçalhá-lo. Ao seu lado, seu novo amor, que lhe apoiou apenas pelo brilho de seus olhos, sem cobrar-lhe nada, sem perguntas.
E a indenização da companhia aérea? Sim, iria buscar. Afinal, fora viúva por dez anos, morrera de amor e perdas durante todo esse tempo.

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Amigos, fecho aqui o laboratório. Foi uma aventura interessante, onde podemos exercitar expectativas perante pessoas imaginárias, num fundo histórico, que não foi premeditado. Ao buscar a história do personagem, tentar colocá-lo na sua idade, acaba-se por resgatar eventos reais. Assim, ela acabou frequentando as passeatas que derrubaram o presidente Collor, em 1992, e um acidente aéreo de grandes proporções que efetivamente ocorreu com o Fokker 100, da TAM, ao decolar do aeroporto de Congonhas, em 31/10/2006.
Poderia ter rendido mais, porém ficamos poucos participantes a levar a estória. Agradeço a todos que participaram, principalmente ao Tônio que nunca ausentou-se.

... e segue o blog!

26 outubro 2006

Laboratório Literário - VI



Estação Jabaquara, metrô de São Paulo, 27ºC

Na saída da estação, ao final da tarde, o tempo abafado com vento fraco e úmido que vinha de noroeste prenunciava a chuva que não tardaria a chegar. Acendeu seu cigarro e seguiu até a rua Luís Orsini de Castro, 372, muito próximo ao local onde, em 31/10/1996, saía de casa para o trabalho e avistou aquele enorme avião voando muito baixo até arrebentar-se contra as casas, inclusive a sua, onde seu marido e seu filho ainda dormiam. Era a primeira vez que voltava a São Paulo depois do enterro do menino e da busca pelo corpo do homem, que ainda muito jovem a trouxera para essa selva de alfalto e concreto, depois de terem se conhecido num encontro estudantil, em 1992, quando de caras pintadas ajudaram a derrubar um governo.
Da estação até o endereço, foram menos de quinze minutos, porém sua vida andou dez anos até parar diante daquele lugar que lhe havia sido indicado por um telegrama sucinto: "Venha pt notícias passado pt" assinado pelas iniciais do nome de seu marido desaparecido.
Estava a apenas duas quadras de seu antigo endereço e reconheceu o número 372 como sendo a casa de seu ex-sogro e soou a campainha. Na fresta da janela, atrás de uma cortina, aquele rosto conhecido, sofrido, amargo não lhe lembrava em nada a fisionomia feliz de dez anos atrás. Ele foi até a porta, liberou o portão e a convidou a entrar.

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Pois bem. Ela reencontra o marido dez anos depois. Quanta coisa a explicar...

1 - Ele a abraça ou a trata com distância?
2 - Ele a convida para rever seu antigo endereço ou vão ao túmulo do filho?
3 - Ela fica com ele ou volta até o apartamento do homem que a acolheu quando sua moto foi roubada?

24 outubro 2006

Laboratório Literário - V


Edifício Copan, São Paulo, 23 de outubro, 18ºC

Fumando um cigarro, do alto do vigésimo quarto andar, ela observa cidade imensa e sente-se um grão de areia no deserto. O sol lhe ofusca a visão e antes da última baforada ela olha para a cama desfeita e recorda de suas últimas noites de amor.
Desde que roubaram sua motocicleta na chegada da cidade, sob frio e chuva, sentiu como se caísse num enorme fosso.
Sob o néon de cerveja a cintilar em suas lágrimas, desistiu de tudo. Levantou-se do meio-fio onde chorara as últimas lágrimas que trouxera do sul e voltou ao bar, na ânsia de afogar-se numa cerveja, ou qualquer outra bebida que seus trocados alcançassem. Para sua surpresa, ele também voltou para buscar o casaco esquecido e se viram de novo. Como uma criança perdida e na aflição de quem está a beira do abismo procurou seus braços e ele a aconchegou até que ela recuperasse a voz e relatasse o que aconteceu.
Sua sina trazia-lhe por rumos e perdas, porém agora lhe mostrou uma nesga de luz. A carona à São Paulo seria um pretexto para o destino levá-la ao Copan, no apartamento onde ela voltou a sentir o prazer há tanto tempo sufocado em desalentos. O ruído das buzinas e do trânsito soaram com melodia. Primeiro sentiu um chão sob seus pés, para em seguida sentir flutuar em sensações.
Mas o tempo não espera... Ela teria que seguir os passos que lhe trouxeram até ali. Desde aquela manhã de 1996 em que viu o avião chocar-se contra sua casa, apenas pôde enterrar seu filho pequeno e nunca mais soube de seu marido. Era hora de procurar pelo endereço. Era hora de fechar os parênteses e retomar sua trilha. Era hora de trabalhar, sobreviver e para isso buscou novamente o papel amassado no bolso das calças caída no chão sob as dele.

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Amigos, as idéias oferecidas ficaram um tanto dispersas dessa vez e tive que montar meu quebra-cabeças com as peças que me deixaram.

Agora, o ponto é esse:

1 - Ela ganha um nome ou continuamos tratando-a em terceira pessoa?
2 - O que aconteceu com o marido após o acidente aéreo?
3 - Ficou óbvio que sua subsistência está relacionada com o endereço que trouxera. Que endereço é esse?

20 outubro 2006

Laboratório Literário - IV


Taboão da Serra, SP, 19/10/2006, 17ºC, chuva.

No terceiro dia de viagem, o dinheiro já estava no fim e os lanches rápidos e frutas furtadas na estrada já não saciavam sua fome. Os out-doors de cerveja lhe chamavam a cada curva e isso lhe assustou. Há três anos não reparava mais nelas. Próximo a São Paulo, noite de chuva fina, que entrava por cada fresta de sua jaqueta de couro, obrigaram-na a parar e comer um prato feito.
Na mesa ao lado, ele cravou-lhe os olhos de ébano, enquanto ela tirava seu capacete e soltava seus cabelos castanhos, que com a umidade ficavam ainda mais crespos. O rapaz de sorriso alvo e pele negra, sorriu-lhe e convidou-a a sentar-se com ele mostrando-lhe a cadeira vazia, que lhe era um convite após dois dias que mal dormiu em abrigos precários e minutos sumários.
Conversaram como se conhecessem-se há muito tempo, ela falou de sua volta a São Paulo, ele falou de seu trabalho com vendas no interior, ela falou de sua moto, ele falou se seu cabelo, ela falou de seus olhos, ele não falou mais nada. Prometeram se encontrar de novo e ela sentiu-se amparada.
Antes de seguir viagem, fumou seu penúltimo cigarro, procurou no bolso trazeiro o bilhete com o endereço no Brás, pegou seu capacete rosa, saiu pela porta e não encontrou mais sua moto.

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Amigos, Florianópolis é encantadora, mas não podemos viver todas as vidas numa só. Ele chegou na sua vida como quem surge numa chuva fina, quase neblina.

Deixo os próximos desafios:

1 - Volta e pede uma bebida ou chama a polícia?
2 - Consegue ainda encontrar com o rapaz ou pega carona para São Paulo num caminhão?
3 - Vai ao endereço que tinha ou a outro lugar?

17 outubro 2006

Laboratório Literário - III


Madrugada de 17/10/2006, Rodoviária de Porto Alegre, 14ºC:

Ela espreitou de dentro do banheiro imundo, e viu a velha gorda e cega que estava sentada rente a porta, trocando pedaços pequenos e ásperos de papel higiênico por alguns trocados. Vasculhou no bolso de sua calça e encontrou algumas moedas que seriam inúteis para comprar o cigarro que não saía de sua mente. Ao passar pela mulher, largou suas moedas e pegou duas notas de dois reais. O caso era urgente, não era hora para misericórdias. A velha ainda lhe disse um “Deus lhe pague” mecânico, vazio como palavras ditas ao vento em noite de tempestade.

Na saída da rodoviária, checou na bolsa seus cem reais tomados emprestados do cunhado, que deveria servir para chegar a São Paulo em sua moto de impostos vencidos e tanque pela metade. Na madrugada, quando saía de Porto Alegre, os faróis jogavam flashes sobre a Vila dos Papeleiros, que contrastava com a opulência de uma cidade que lhe negava futuro. Não tinha tempo para saudades, não tinha saudades do tempo em que tentou de tudo para viver, do lugar onde safou-se das drogas e do álcool, mas não conseguiu escapulir das armadilhas que o destino lhe pregava. Era o Rei Midas ao contrário: a Rainha Merda.

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Iniciamos nosso laboratório. Até ontem à noite, fui dormir pensando no cara, na rodoviária. Abro minhas mensagens hoje e vejo que a estória tomou outro rumo, como deveria ser. Dos cinco posts, três pediram por uma mulher. Aeroporto e motocicleta passaram a frente da rodoviária, mas optei pela motocicleta. A noite foi vencendora por três votos.

Deixo as próximas questões:

1. Florianópolis, São Paulo ou retorna Porto Alegre
2. Encontra ele, ela ou fica só
3. Clima romântico, golpe ou atrito de idéias

16 outubro 2006

Laboratório Literário - II


Abro hoje uma série incompleta: o laboratório literário. Vou à frente, chamando a estória que será erguida pelos próprios leitores.

A idéia básica é de um conto que está ocorrendo concomitantemente, no mesmo espaço de tempo entre as publicações. É algo vivo: a partir de algumas perguntas, ao final de cada post, vamos construindo tudo, seja tema, personagens, ambientes. Os próprios comentários nutrirão o próximo post de acordo com as questões deixadas.


Pretende-se que seja bissemanal, às terças e sextas-feiras.

Quem se habilita? O acesso é livre a qualquer tempo, assim como a vida, que, quando menos se espera se ganha ou se perde, muda de rumo.


Deixo o primeiro desafio:

1 – ele ou ela?
2 – aeroporto, rodoviária ou motocicleta?
3 – sol, noite ou tempestade?

10 outubro 2006

Laboratório Literário




Um desafio!
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A partir de 16/10/2006
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Aguarde...

09 outubro 2006

A Olho Nu - última parte

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Se hoje saio à rua e me atiro nas ondas da multidão, posso provavelmente ser visto com meus óculos azuis, minha bengala prateada, minha roupa sem combinações. Realmente posso ser visto assim. Mas o que eu vejo? Vejo o cheiro que teima em cruzar por mim, ora perfume, ora odor, ora de nojo, ora de amor. Virei um poeta andarilho, daqueles que arrecadam os aromas e os guardam na mente. Depois que vaguei pela rua, chego em casa e me deito nos lençóis de cetim que ela ajeitou pra mim. De banho tomado, de pele eriçada, fico esperando minha mulher amada, com seus olhos macios, com sua penugem suave nos braços, sua boca macia e quente, que vai me devorar o corpo e navegar na mente, feito barco no oceano das lágrimas, livre de afogar-me de partidas, pronto para naufragar nos gostos que só o corpo dela me dá.

No teu cabelo macio
Sinto o cheiro de chá
Pode ser camomila
Pode ser maracujá
Sinto o cheiro de cio
Que há no teu gosto do mar
Brotando na tua pupila
Oculta no toque macio
Quando tu queres amar

A Olho Nu - 7ª parte


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Meus olhos, antes vazios perante aquilo que chamam luz, abriram um espaço na minha mente, que preenchi daquilo que vejo: as sensações que tremulam além do óbvio.
Assim fui me construindo. Feito tijolos, meus gestos acumularam volumes diferentes, meus ouvidos vibraram onde ninguém mais percebia, minha língua distinguiu os temperos e meu olfato me guiou muito além do que os olhos podem enganar.
Tenho uma vida pela frente e o que vejo ninguém vê. Traço dos sons à distância e das sensações na pele percebo o que há depois. Por isso escrevo meu jeito de dizer o que vislumbro.

05 outubro 2006

A Olho Nu - 6ª parte


O sexo veio ao natural. Conheci uma garota que usava um perfume de flores que nunca encontrei antes. Foi lendo Neruda que tudo aconteceu. Ainda sinto meus dedos contornando suas curvas, buscando seus segredos e umedecendo em suas entranhas. Os gemidos que compartilhamos pareciam vir de um só corpo quando a penetrei. Beijei seus olhos e os senti fechados, como se procurasse igualar a mim e maximizar o prazer das carícias. Repetimos algumas vezes, ouvindo música clássica, jazz, blues, bossa nova. Neruda combina com blues, Vinícius, obviamente, com bossa nova e um tango me dá um prazer muito mais intenso. Diva se foi, sem me avisar. Lembro apenas do sabor de sal de suas lágrimas que só fui reencontrar no mar, anos depois. A sensação que tive de encontro ao mar é que ali estavam todas as partidas, todos os amores perdidos, todo o adeus possível. Ali, naquela areia fina que me permeava os dedos, diante a imensidão das despedidas que me molhavam em ondas, me descobri poeta.

02 outubro 2006

A Olho Nu - 5ª parte



Quando eu era já adolescente, fomos morar na cidade, a uns trinta quilômetros de nossa casa. Assim, pude estudar numa escola convencional e ao mesmo tempo aprender braile. Até hoje não consigo entender como as pessoas conseguem ler diferente. Na biblioteca havia poucos livros, mas devorei todos. Os que não havia, procurava por gravações onde pudesse ter acesso ao seu conteúdo. É interessante como alguns escritores parecem ter sido cegos quando criança, porque descrevem tão bem que posso imaginar os cheiros, o toque e até ouvir o timbre de voz dos personagens. Tomei gosto pela poesia, porque as metáforas se transformaram em imagens poéticas, onde tudo se explica por sensações, algo que faço desde que minha irmã me vomitou.