27 abril 2006

InSônia - parte II


[Pacote de Flores - Ariadne Decker]

Quatro e meia, talvez cinco horas. Recusava-se a olhar as horas no celular sobre o criado mudo, porque estava no lado da cama que Gustavo dormia. Aceitar as horas era aceitar a perda e isso, ela não aceitaria. Suzana sabia que a dor persistiria, que logo cedo deveria por negro e ir a igreja rezar a missa de sétimo dia. Teria seu filho nos braços, teria o amparo da irmã, que também de negro choraria como se tivesse ela perdido o amor de sua vida.
Quando o primeiro raio de sol perpetrou o quarto, encontrou-lhe pálida, o que mais tarde seria motivo de comentários na saída da igreja, dado o contraste triste do vestido negro sobre um corpo que arderia de saudades.
Do trabalho dele viriam alguns colegas de departamento, mas não todos porque no acidente também morrera Sônia, a secretária de Gustavo, quando voltavam de Blumenau para atender um cliente. A pobre Sônia sofreu até ontem, em coma, entre seus pedaços de carne que pulsaram até a morte no hospital, ondeo chegou com fragmentos de Gustavo, pedras, terra e lataria. As duas mortes na empresa chocaram a cidade e talvez por isso a igreja estivesse cheia, embora eles nunca a tivessem freqüentado, após o batizado de Juliano.
Após a missa, sua mãe insistiu que ela fosse passar uns dias em sua casa, na Lagoa da Conceição, na tranqüilidade de maio, quando o vento sul atravessa a ilha e prenuncia rajadas antártidas, que teria que suportar sem o aconchego a lhe aquecer as entranhas. Poderia espairecer um pouco e repousar, mas ela não aceitou o convite e permaneceu no apartamento. Lá ficaria até que todas as células desprendidas nas noites de amor se desfizessem, porque cada uma era um resto dele, um farelo, uma migalha que Gustavo deixara para nutri-la de amor. Sua irmã solidária e chorosa dispôs-se a ficar com ela no apartamento, cuidando de Juliano e mesmo dela, nesses tempos tão difíceis. Na verdade, ninguém saberia dizer quem precisava mais de quem.

20 abril 2006

InSônia - parte I

[Campo de Flores sob Neblina, Ariadne Decker]

A cama lhe parecia imensa, às quatro horas de uma noite insone. Seus olhos lhe ardiam, embora as lágrimas já tivessem secado no travesseiro. Jurava que ainda sentia o calor dele ao seu lado, seu cheiro nos lençóis. Custava-lhe acreditar que fazia seis dias que ele morrera, com seu corpo dilacerado entre as ferragens do carro desfeito nas rochas, deixando-a com o peso das horas sobre seu corpo ainda jovem. Custava-lhe crer que deveria cuidar de seu filho sozinha, porque Gustavo nunca mais voltaria. Quando amanhecesse, já seria sete dias de ausência, sem sono completo, dor de cabeça constante.
Juliano dormira cansado de chorar, um choro sentido que lhe tirava da angústia de sua própria dor, essa mesma dor que ela calava o peito e lhe apertava a garganta e lhe enjoava o estômago e lhe trazia à tona mais e mais lembranças que volta e meia culminavam por senti-lo dentro dela, como se o gozo se estendesse mesmo após sua morte.
Suzana virava na cama, olhava pela janela e longe via o mar, que continuava lá, porém cinzento, sem brilho, sem ruídos. O que ouvia era o sono intranqüilo do filho pequeno, pouco mais de três anos de idade, que cresceria sem pai, aquele homem que brincava com todos. Conhecera ali mesmo, a poucas quadras, na baía norte, que margeava Flonianópolis e nunca mais serviria para as caminhadas de mãos dadas ao fim da tarde.
Gustavo, Gustavo...
Da cama via o barbeador sobre a pia do banheiro... Era como se ele viesse envolto na toalha e se despisse sobre ela para amá-la na madrugada, custando-lhe engolir os gemidos que poderiam acordar Juliano que dormiria no quarto ao lado.

13 abril 2006

A Vênus Roubada - parte II

Encontraram-se, falaram-se, riram-se. Passaram-se horas...
Aquele sorriso branco, aqueles olhos que descortinavam sua íris, foram encantando a Tamoio como uma vítima de um ritual canibal. Ele foi deixando-se envolver naquele élan, no seu perfume e nos seus gestos. Eleonor, por sua vez, surpreendeu-se falando com um homem por mais de quinze minutos, sem perder o interesse. Ele falou de seu nome Tomaz, que trocou para Tamoio para poder encontrar-se no espelho. Ela riu e notou aqueles traços marcantes, numa pele escura, entre o sol e o negro, cabelos de ébano, lisos, rosto anguloso, olhos pretos sombreados por uma espessa sobrancelha, um sorriso de dentes alvos e perfeitos, que falava coisas que a divertiam e a faziam pensar. Tudo isso foi trazendo à tona algo que nunca ela experimentara. Ela finalmente gostou de estar tão perto de um homem e seu cheiro másculo não a incomodava.
Antes da noite, já davam as mãos e trocavam carinhos pela pele do pescoço onde ele enfiara a mão entre seus cabelos, enquanto a outra envolveu-lhe a cintura fina e facilmente a trouxe para junto de seu corpo. Só um beijo estancou o sorriso que ambos carregavam desde o primeiro instante que se viram. Eleonor se deixou levar pelo momento, se permitiu tocar pelos lábios daquele moreno, pouco mais alto que ela, que a fazia rir e logo a faria tremer.
Eleonor, que onde passava revolvia o tempo, girava pescoços e atraía olhares de homens e mulheres, estava envolvida nos braços de Tamoio, que ardia de prazer ao apertar-lhe o corpo contra o seu. O beijo foi diferente daqueles que ela conhecia, as mulheres que ela amara eram suaves, macias e desvendavam calores em seu corpo que ela já sentira. Agora, com Tamoio eram outros os pontos que lhe ardiam no corpo, eram outras sensações e ela não soube dizer ao certo o que mais lhe agradava.
Tamoio, desde o primeiro post que leu, soube que ela era especial e a quis do mesmo jeito, pois ainda não sabia explicar como poderia uma mulher como aquela amar só a metade da humanidade, deixando todo o sexo oposto escandalizado de saudades de algo que nunca havia ela permitido.
Hoje, os dois têm um blog de amor, postam um para o outro e para quem quiser entrar. Não se limitam a nada, deixam a vida rolar, até que a natureza clame de volta o instinto dela ou cobre dele a Vênus roubada.

07 abril 2006

A Vênus Roubada - parte I

[Venus, de Botticelli]
Tamoio não fumava, raramente bebia, ria muito e tinha um blog. Não era um blog de cultura erudita, de política de esquerda, direita ou sem rumo. Tamoio, não fumava, raramente bebia, ria muito e tinha um blog onde falava em rimas e contava verdades de uma forma só sua.
Num de seus posts sobre mulheres e desejos, encontrou um comentário original que dizia que mulher por mulher muitas havia, mas entre todas haveria de ter uma que falasse coisas que só outra mulher entenderia. Assinou Eleonor e deixou Tamoio tomado de um calor que lhe fez criar mil posts instantâneos em sua mente para falar sobre essa mulher que Eleonor desenhara.
Passaram-se duas semanas, e não tendo deixado qualquer link possível, Tamoio passou a rimar seus sonhos com melancolia, poesia com saudade e já quase era tarde, quando Eleonor voltou. Ela escrevia com elegância, como se cada palavra fosse numa nova língua, totalmente original, falando de paixão, sedução, lábios e pensamentos incomuns. Dessa vez lincou um blog e deixou uma fresta para Tamoio.
Antes de abrir a porta, Tamoio espiou por tudo, adentrou em cada post, cada seleção de imagens. Havia um mistério entre as linhas, que por mais que seu nome fosse indígena, não encontraria pajé que o decifrasse. Era um blog sofisticado, sem ser petulante, criativo sem ser abusivo ao gosto comum, inebriante como a linda mulher, que aparecia andando numa imagem em movimento ao lado da página: morena, de olhos mel com chocolate, amendoados. Cabelo levemente ondulado, que emolduravam um sorriso enigmático: uma Monalisa digital atualizada, escreveria ele mais tarde em seu blog.
Tamoio entendeu que não era uma mulher que procurasse um homem para completá-la, pois ela era inteiramente especial, mas mesmo assim ousou, entre rimas e tiradas inteligentes convidá-la para um encontro.
Eleonor surpreendeu-se com Tamoio. Homens lhe rodeavam constantemente e a todos era refratária. Já sabia do quê sua libido se nutria e por isso não queria caçoar de si ou de seus desejos. Aceitar o convite para um encontro no Museu da Língua Portuguesa, na Estação da Luz, foi mais para matar a curiosidade do lugar, junto com um poeta que transpirava sorriso e nunca poderia ser inconveniente. Não sabia como encontrá-lo, mas Tamoio, entre original e palhaço, disse que usuaria um cocar, o que não seria nada estranho em se tratando de São Paulo, onde há espaço para todas as tribos.
Ele perguntou de que lado ela viria e ela falou, sem maiores questionamentos. Ele só queria saber, para poder encontrá-la antes, andar atrás dela alguns metros e poder descer seus olhos por aquele corpo que era tão lindo como imaginava...