30 maio 2006

Atrás de seus olhos

Cada olho, sua sentença... Num mesmo lugar, as vidas se entrelaçam, os julgamentos afloram e todos se escondem na multidão. Você já parou para pensar no que povoa a mente de cada um? Os relatos que se seguem acontecem ao mesmo tempo, num shopping center de qualquer cidade. Poderia ser na sua, poderia você estar presente, poderia você ser qualquer um deles, mas sempre perceberia tudo de uma forma única, porque atrás de cada olho há um segredo.

25 maio 2006

Esperança & Embriaguez

Este texto nasceu em setembro de 2005, praticamente junto com o blog.
Trata do ébrio político que 2005 nos trouxe, transformando um sonho num pesadelo, com ardil típico das ilusões que passam da utopia ao desencanto. Convido-os a beber desse cálice, porém sem calar-se, renunciando à lucidez.


Esperança & Embriaguez

Hoje vou beber até tornar-me o mais torpe dos mortais. Vou embriagar-me da verdade que zoa entre as linhas dos discursos hediondos em palanques de barro, onde adjetivos de políticos zombam de minha inteligência, camuflando seus substantivos empedernidos. Por fim, vou atacar seus verbos que desviam de seus objetivos dolosos, corrompendo a estrutura moral com revelações incestuosas à sombra de inaudíveis clamores por ética e retidão.

Vou entornar um vinho tinto e seco, como as verdades que são contidas. Só vou calar meus pensamentos após o último cálice e então vou naufragar num sonho etílico que vai me afastar das frases utópicas e de um país idílico que sonhei possível. Sim, vou sorver cada gole como se os fatos fossem líquidos e não gasosos como se têm mostrado aos nossos sentidos. Vou ingerir todos os graus que o álcool me permitir para esquecer o que sinto: absinto de ilusões absortas e de temerária noção entre o que é realidade e o que era imaginação. Se de todos esses goles ainda me sobrarem vagas recordações do que sonhei, vou buscar num bar, num bolicho qualquer, uma aguardente que me queime e ardam as miseráveis quimeras que herdei de um otimismo congênito, pio de fé, beirando a soberba de quem acredita e espera.

Depois, vagando por uma sarjeta imunda, não vou olhar pra trás. Vou sempre pra frente e pra baixo, lá onde encontro àqueles que ditam o futuro da civilização. Quero falar-lhes de quanto acreditei em tolerância ante a divergência e na ética perante o benefício próprio ou de seu gueto. Não vou contaminar-me de seus hálitos azedos e de suas corruptelas do vernáculo para melhor aproximarem-se dos súditos: vou falar da verdade crua que rasteja nas ruas, pede moedas e vende seu corpo para mantê-lo de pé. Vou falar-lhes das ruas vazias de gritos que não impedem seus atos vândalos com suas bandeiras desfiguradas de partidos encardidos pelo poder. Vou contar-lhes que longe desse lamaçal existe um povo que acredita no que vê e logo esquece, para não morrer de desespero perante filas de empregos e de serviços de saúde. Se me falarem de tráfico e imputarem toda a culpa nele, quero lembrar-lhes da violência incentivada pelos seus filhos: em quartos bem decorados e fortemente protegidos, queimam ácidos e ingerem balas coloridas para esquecerem-se do desprezo e abandono dentro se suas famílias, desde que seus pais resolveram tomar o poder e enchê-los de solidão enriquecida. Nas suas “raves” particulares, varam noites, cheiram tudo, menos um delicado perfume de mulher.

Confesso agora que estive embriagado por muito tempo, não por ócio, não por ódio não por ópio. Estive contaminado de alegria de um país que me prometeu futuro e me regalou frustração por ter acreditado que o medo vinha de cima, sem perceber que ele permeava de todos os lados. Nesse novo porre que agora me entrego, quero aprender a escolher melhor os seus comparsas. Não adianta eleger o sonho, se o pesadelo for o preço. Não adianta escolher uma bandeira se para hasteá-la tenho que erguer um mastro podre, sustentado por trezentos dilúvios, misturando valor e impropério, andando de malas pelos céus, vendendo fé em troca de votos, empilhando vil metal em nome de suas convicções socialmente duvidosas.

12 maio 2006

Lisa R B Insultada

Esse post foi publicado originalmente em setembro de 2005.
Lisa R B é contraditória desde o seu nome, porém ela resiste bravamente a massiva pressão política e à arrogância econômica que teima em transformar entreterimento em cultura.
Neste país, o poder econômico orienta a divulgação da cultura a seu bel-prazer, como se fosse um instrumento de dominação antes de ser uma manifestação do povo.
Tendo crescido numa ditadura e descoberto a liberdade de expressão já adulto é como se o normal fosse invertido. Isso fica intrínseco na forma como conheci Lisa R Bodarut Luca.

Conheci Lisa, em 1970. Era linda e tímida. Tinha um pai muito repressor que não a deixava andar com amigos e muito menos fazer o que ela mais gostava: representar. Naquele tempo, seu pai austero, vivia como novo rico e a cada dia sonhava em tornar-se um “cidadão de primeiro mundo”, como ele mesmo afirmava. Contrariando tudo o que seu ele desejava, Lisa buscava sua própria identidade. O cinema novo era sua fascinação, mas o que o pai queria era que ela participasse do Festival da Canção e tornar-se uma diva nacional. De certa forma ele reconhecia seu potencial, mas a seu modo de ver as coisas.
Foi nessa época que ela fugiu de casa. Melhor dizendo, foi banida, tal era a divergência que tinham. Ela, no teatro de arena, ele na Arena. A princípio conviveram com suas desconfianças, porém um dia seu pai mandou a polícia invadir o teatro em que ela atuava. Ela, que Esperava Godot, não contava com a dissimulação paterna, que dizia aos vizinhos que ela era uma hippie desordeira e que a mandaria estudar em Paris. Os vizinhos acreditavam piamente na versão dele, e lá se foi ela chorando viver distante de tudo o que sonhava.
Quando ela voltou para o Brasil, descobriu que seus amigos estavam engajados na sobrevivência, súditos de todos os sonhos que seu pai poderia ter: trabalhavam como atores em novelas em rede nacional, onde mimetizavam um país de luxo, onde os ricos eram gentis e românticos e os pobres divertidos e servis.
Ela deixou seu talento de lado e foi trabalhar numa fábrica, onde poderia organizar espetáculos de outro padrão: comícios sindicais. Seu pai, embora já mais velho e menos sonhador, ainda fazia o possível para deixá-la incógnita. De operária rebelde, passou a ser líder sindical e foi para rua pedir que seu pai permitisse que ela pudesse gritar, gesticular e aglutinar-se pelas ruas. Ele, acostumado que era com seus devaneios artísticos, concedeu-lhe permissão e ela não tardou em pedir eleições diretas já. Ela acreditou que seria possível e reuniu centenas de milhares de pessoas nas ruas.
Quando tudo parecia que os anos em que seu pai a mantinha refém de seus ideais estariam chegando ao fim, tudo ficou igual: seu pai escolheu novamente quem iria ficar à frente de seu espetáculo. Ela voltou ao sindicato e falou para seus amigos que era hora de mudar, de mostrar ao seu pai que era possível fazer diferente e escolheu um colega para colocar a frente na luta. Porém seu pai era astuto e contratou um ator de TV para enfrentá-lo nas ruas.
O povo acreditou que o lindo era mais fino, mais de acordo com a novela das oito e que teriam um galã a frente do país. Lisa, com seu colega barbudo, cabeludo, sem um dedo que havia perdido em sua inabilidade no trato com a máquina e que ainda falava o português das ruas, pareceu uma idiota. Como Lisa poderia aliar-se a um sapo, enquanto o príncipe sorria vitória em horário nobre?
Lisa, que na época ostentava uma bandeira vistosa e vermelha, enrolou-a e voltou ao teatro e começou a fazer uns bicos no circo perto de sua casa, para poder manter-se. Seu pai ria feliz em ver sua filha finalmente dobrando-se a seus pés.
Passou pouco tempo até que o canastrão mostrou a que veio. Apesar de ter sido tão bem instruído pelo pai de Lisa, resolveu fazer-se de dono de tudo e agir por conta e risco de seu ego. Lisa, atônita, não entendeu o que acontecia, quando estudantes de todo país foram às ruas para derrubar aquele artista engomado, sem darem-se conta que estavam fazendo justamente o que o pai de Lisa queria, ou seja, recuperar o terreno perdido.
Em 1994, encontrei Lisa novamente num comício, com seus sonhos em bandeiras estreladas. Ela, que agora trabalhava também em novela, jurava que não fazia parte do circo eletrônico. Ela quis maquiar seu sapo barbudo e coloca-lo novamente no topo de sua esperança, no entanto aconteceu o que ela não contava. Seu professor de faculdade quis ensinar a todos, um caminho intermediário, que prometia mudar tudo sem mudar nada. E todos acreditaram nele, pois era inteligente, falava várias línguas e conhecia tudo. Só não sabiam dos amigos que ele tinha e que o deixaram chegar lá.
Assim foram passando os anos e Lisa foi se acostumando com a idéia de sua vida de artista estava fadada à periferia, ao secundário, a tudo que fosse alternativo ao modus pensanti. Ela foi trabalhar em favelas e povoados distantes, procurando resgatar uma cultura ultrajada pela televisão que massificava tudo, de acordo com o padrão que seu pai ditava.
Em 2002, tocou seu telefone. Ela fora novamente convidada a visitar seu velho amigo e teve mais uma surpresa entre tantas que já tivera. Seu amigo estava engomado, falava diferente, prometia tudo e se vestia como um galã de televisão. Ela que o conhecia tanto, não desconfiou de seus novos amigos que lhe rodeavam e que lhe enchiam de meios de ação e corrigiam todos seus gestos. Como num passe de mágica, ele estava na televisão, na mídia e com postura nas frentes da câmera como se tivesse feito anos de técnicas televisivas. Seu sapo tinha virado príncipe. Até seu pai estava ao seu lado quando o encontrou de novo.
Lisa confiou, ergueu a bandeira e foi às ruas saudá-lo. Uma massa humana o ergueu e ele foi conduzido ao palco, com toda parafernália possível, sem que lhe faltasse recursos. Seus companheiros pareciam agora os antigos senhores, que freqüentavam a sua casa na infância, quando seu pai lhes oferecia grandes banquetes.
Hoje Lisa R. Bodarut Luca acordou de manhã e viu que novamente havia sonhado demais. Voltou ao seu teatro mambembe, com uma garrafa de cachaça embaixo do braço e chorou amargurada em ver que seu pai novamente lhe negava o direito de mostrar-se completa, de exibir-se verdadeira a todos, sem ter vergonha de ser brasileira. Já não sabe mais se tudo que sonhou era delírio artístico ou se algum dia seus amigos que agora cercam seu pai estão representando ou se tomaram gosto pelo poder.

04 maio 2006

InSônia - parte final

[Pôr do Sol - Ariadne Decker]



Naquela tarde, sentou-se com Juliano no tapete da sala e brincou de Lego. Montou um avião, montou um carro, tal qual o pai, que desmontara-se em outro, fazia pacientemente com o menino. Juliano não perguntava pelo pai, talvez porque quando tentou as lágrimas derramaram-se pela face de sua mãe e certamente não lhe agradara. Ele chorava, quieto na cama, no mesmo horário que o Gustavo lhe contava histórias.
Foi quando juntou a peça amarela, de oito pinos com outras duas azuis de quatro cada, que ela parou feito estátua. Ao vê-las encaixar, lembrou-se do acidente na volta da viagem a Blumenau, como ele havia lhe dito que faria, porém trancou o suspiro, deixou cair as peças no tapete para surpresa de Juliano e deu-se conta que o carro arrojara-se contra as rochas em Palhoça, no trecho sul da rodovia, sentido oposto ao da viagem. Levantou-se e olhou o laudo do legista que estava sobre a estante desde o primeiro dia de sua morte. Soube que as partes do corpo foram encontradas, com exceção da glande, que se desprendera de seu corpo. Lembrou-se da secretária que o acompanhava, entrando no hospital com partes do corpo de seu marido. De como Sônia foi levada também retalhada e não pode resistir à tentação de imaginar o falo que tanto lhe dera prazer jazendo decepado naquela boca. Lembrou do telefonema anônimo de voz enciumada, que lhe alertara sobre sua irmã e Gustavo que ela nunca entendeu. Agora, nesse instante, ela reconheceu a voz abafada e trêmula da secretária. Levantou-se, chamou pela irmã que chorava baixinho no banheiro. Precisando falar para alguém de sua suspeita, falou por trás da porta que já sabia de tudo. Ela chorou mais forte ainda.
Voltou-se a sentar com Juliano, enquanto ouvia a janela do banheiro se abrindo e o grito descendente de quem se atirava para a morte.
Gustavo, aquele filho da puta, comera sua irmã e deixara-se comer pela secretária.