31 março 2006

A Era da Leviandade


Embora o ato de perpetuar lembranças remonte à pré-história, foi no século XX que se tornou mais eficiente e abrangente. Basta passar por museus históricos, ou mesmo folhar antigos álbuns de família para encontrarmos aquelas fotos em sépia. Nelas, senhoras em vestidos armados e senhores com seus trajes próprios para celebrações nos remontam momentos de seriedade e de responsabilidade com o tempo. Estavam cientes de que capturavam um cenário, um instante para que fosse visto por seus filhos, pelos filhos de seus filhos e, quem sabe, pelos filhos dos filhos de seus filhos.
No cinema, vigorava a luz que transferia para contrastes tudo aquilo que era impossível em cores ou sons. As primeiras gravações sonoras continham pronúncias acentuadas de esses e erres para contrabalançar o chiado e a falta de definição, que seriam possíveis só décadas mais tarde. Todos esses meios de transmissão de história eram restritos a uma elite que tinha a seu alcance uma tecnologia, que para sua época era o triunfo da capacidade humana. Sendo a história sempre contada pelo vencedor da guerra, deduz-se que eram eles os dominantes sobre uma maioria sem acesso a tais recursos.
À medida que o século avançou, também os registros históricos foram se espalhando pela pirâmide social, possibilitando que mais pessoas tivessem acesso à formação da história. Novamente, os dominadores em busca de maiores rendimentos, buscaram novos consumidores e geraram novas necessidades. Assim, pela metade do século XX, o que víamos eram câmeras cinematográficas se alastrando pela sociedade de forma portátil entre as famílias mais abastadas, as máquinas fotográficas que permitiram nossas fotos de infância em cores desbotadas e gravações sonoras em fitas K7 com vozes infantis perante um interlocutor formal, oriundo da geração anterior.
Hoje, início do século XXI, temos computadores que nos interligam a Internet e podemos registrar para todo mundo nosso dia a dia em blogs. As câmeras digitais são conectadas diretamente na rede e na maioria das vezes nem ganham mais sua impressão em papel. O cinema é feito de imagens montadas, em cenários inexistentes por atores com movimentos virtuais.
Qual será nosso álbum do futuro? As fotos em sépia continuarão existindo, ao lado de fotos coloridas e desbotadas? E como colocaremos o momento atual, onde a memória da câmera é deletada para dar lugar a novas imagens? Nossos registros se tornaram tão virtuais e levianos que estão deixando de ser o que sempre foram: pistas para explicarmos o passado.
Tudo isso nos faz refletir sobre as relações inter-pessoais e as comparações se tornam inevitáveis. Aquelas famílias reunidas para, numa tarde ensolarada, colocarem seus melhores trajes domingueiros e registrar em “photografias”, retratavam um modo de vida da época, onde os relacionamentos eram estabelecidos de maneira demorada, com namoros e noivados presumíveis que fatalmente transformar-se-iam em casamentos com muitos filhos, onde a tolerância e a subserviência mantinham a coesão familiar.
Quando a tecnologia do pós-guerra atingiu os lares, trouxe a roldão uma flexibilização que, em nome do amor e da paz, produziu uma geração onde os laços se tornaram mais frágeis, com casamentos menos duradouros, gravados em fotos desbotadas.
No momento que vivemos agora, tudo é virtual, banal e leviano. Vivemos a geração da leviandade, onde os registros se tornaram funestos e deletáveis, assim como os relacionamentos. As pessoas vivem para o dia, sem importar-se em fazer história e não tolerando nada que fuja do prazer proposto histericamente nos meios de comunicação de massa, feito video-clip.
E depois, o que restará? Sem história, sem quem faça a história, a humanidade ruma ao egoísmo do prazer instantâneo ou busca caminhos diferentes daqueles que conhecemos nos álbuns empoeirados na casa de nossos avós?

24 março 2006

Me Beija


- Easy rider de uma vida que não é minha, quero o adeus falso aos amores vendidos! Vou abandonar de vez meus destinos estabelecidos para encontrar repouso de minha alma errante. Vou subir no mais alto dos prédios ou na ponte que mais longe do rio alcance! Nem com toda essa chuva que me arde os ossos quero desistir de fugir gelado, encharcado de meus sentimentos doloridos! Chega, chega! Chega de gritar sozinho por essa janela como um náufrago em surto de desespero numa ilha infestada de seres transparentes que inundam a madrugada! Vou sair daqui agora e não volto mais! Pode ser o trem que invade a noite, vazio e rápido! Pode ser a morte triste do viaduto contra o caminhão que se aproxima! Ou talvez mais fácil seja o torpor do veneno me amortecendo a queda ao chão depois de uma dose mal dosada de desespero! Não, não vou me submeter ao sol, não vou deixar que meus olhos brilhem uma vez mais ao raiar do dia! Terei nojo dos que me olharem lá embaixo e me pedirem que salte para eles, nesse deleite fugaz das massas! Vou me entorpecer numa rave em alta rotação ao gosto de ecstase com Smirnoff Ice! Juro, juro que faço isso tudo numa noite só e volto amanhã e depois de amanhã e depois de depois de depois de amanhã, só para ver seu coração encolher-se até secar por ter negado meu beijo!
- Que cantada triste...
- Quis ser diferente, não triste.
- Foi triste, mas foi diferente.
- Ah, bom! E aí, me beija?
- Não, vou esperar prá ver.
- Não acredita que eu possa fazer tudo isso?
- Cara, conheci você agora!
- E se eu dissesse que já lhe conhecia, só que nunca lhe encontrava?
- Como assim?
- Vaguei dos desertos de Atacama até as montanhas do Tibete descalço e despossuído de amor; virei páginas infindáveis de velhos livros esquecidos em porões de navios fantasmas; percorri margens de rios em curvas longínquas da Amazônia, desde o Peru até Marajó; desci corredeiras no Alasca e naufraguei na costa da Florida, em 1532, para depois percorrer nu as terras selvagens do golfo até o planalto sagrado do México pré-colombiano; congelei nas geleiras dos Urais para ser reencontrado por um velho pesquisador 30.000 anos depois; Derreti de dor ao ver meus filhos mortos aos pés do Vesúvio em Pompéia, dois dias depois de enfrentar os leões em arena sangrenta de Roma. Não vi limites terrenos atrás de alguém para amar por uma noite e encontrar sorrindo na manhã seguinte.
- Nossa, você insiste mesmo.
- Me beija...
- De que serviria um beijo numa busca agonizante como a sua?
- Encanto.
- Viveu também as histórias das fadas?
- Ainda não encontrei minha fada, que dirá minha princesa.
- Agora ficou piegas.
- Amor é piegas.
- Olha, você até que tem um charme de desespero, mas prefiro a mágica de um instante que me desperte... Acho que eu já estou falando demais...
- Não, me fala mais disso.
- Sei lá, eu espero alguém além do beijo fácil, da cantada contundente, do poema batido.
- Desenvolva.
- Você é esperto. Começou com uma conversa de homicida e já me faz falar de meus presságios de adolescente.
- Continua.
- Virei noites em livros e músicas que falavam de um amor irreal que me surgiria na esquina e me arrebataria de uma vez; ainda hoje quando saio a noite tenho a impressão que alguém me procura e olho atrás e não encontro quem me seduza os olhos ou que me conduza aos sonhos. Mesmo assim procuro estar pronta para um encontro indeterminado. Aí você chega...
- Sim, cheguei.
- Me beija...

17 março 2006

Eleonor

Volto a trazer-lhes Eleonor, que frequentou esse blog no início, bem como na Toca da Santa, cantinho mágico do Blog da Santa.

O que seduzia em Eleonor não era a sua voz aveludada ou seu cruzar de pernas, que invariavelmente era em câmera lenta, quadro a quadro. Era algo mágico, um élan, um mistério.
Quando ela sorria, trazia ao ambiente a expectativa de sua graça. Um lampejo de seus dentes parava a cena e ficavam todos na ansiedade do que vem depois, um artilheiro frente ao gol pronto para marcar.
Eleonor era gentil, mas trazia em si a aura dos pedestais. A todos distribuía atenção e de todos merecia o desejo de servi-la.
Não, Eleonor não era aquele mulherão de revista. Era a proporção certa entre o real e o intocável. Uma delicadeza equilibrada sobre pernas bem torneadas. Seu quadril era o arcabouço de boas carnes, mas não ofuscava os contornos do conjunto. Seus seios, rijos e definidos mereciam seus decotes. Talvez fosse a magia de seus cabelos, levemente ondulados, com balanço suave como se tivesse recém saído do cabeleireiro.
Tinha olhos de um mel com chocolate, doces, hipnóticos e amendoados. Quando naturalmente piscavam eram cortinas que baixavam para novamente trazê-los ao palco e receber bis. Sua pele bronzeada em qualquer estação era de um veludo macio, um pêssego maduro a espera da primeira mordida.
Porém, de todos os seus atributos, nenhum competia com a sensibilidade e a energia que emanava em qualquer conversa, quando a sinergia que lhe transbordava delatava sua inteligência. Seu carisma atraía ouvidos, olhos e o silêncio que precede as vozes de quem nasceu para ser seguido.
Assim era Eleonor, cheia de luz, cheia de suspense. As mulheres da faculdade lhe prestavam total apreço e, em alguns casos, olhares de encantamento. Nunca foi de ser escolhida e, por isso, fazia suas opções.
Parava o trânsito literalmente. Na rua, nos corredores, homens quase ensandecidos a viam flutuar entre todas. Mulheres não se sentiam ameaçadas e procuravam estar sempre por perto para aparar os remanescentes.
Anos atrás, era menina e com outras brincava. De tanto gostar de Jade, por ela se encantou. Não sabia muito bem o que era e no que daria, mas sonhou noites inteiras tendo Jade em abraços até acordar-se em sobressalto ao beijá-la. Jade não se confirmou, como outras tantas que passaram, mas nem por isso se abalou. Entendeu perfeitamente quanto especial era e porque isso a só ela interessava.
Enquanto os homens, seus olhos perdiam-se nas suas formas e seus ouvidos embebiam-se em sua cândida e suave respiração, Eleonor vagava imune a tudo. Sabia dos suspiros e das fantasias que despertava, mas o que ninguém sabia era o que dentro de Eleonor a fazia vibrar. O fato de ser lésbica, não vinha ao caso e por isso não revelava.

10 março 2006

Sonhos da Galinha Verde - V


Um dia, minha filha acordou-se assustada. Havia tido um pesadelo daqueles! Assustadoramente real. Porém, no final, eis que aparece uma galinha verde que lhe confirma tratar-se de uma ilusão.Quero sonhar com galinhas verdes! Terei o direito de ter todos os pesadelos e acordar-me sorrindo.

Presadelo V - Estou eu, em 2036, conversando com minha neta...

- Vovô, o que é isso nessa foto?
- É um pássaro!
- O que é isso, vovô?
- Uns seres com asas que existiam quando sua mãe era criança.
- Que estranho... Onde eles vivem?
- Não, eles não vivem mais, meu amor. Foram todos mortos.
- Mortos?
- Sim. Surgiu uma notícia que eles poderiam causar uma grave doença e foram sacrificados.
- Pobrezinhos... E era verdade?
- Nunca se soube, mas os donos do laboratório que faziam a vacina ficaram bilionários!
- Ah... E o que é isso na foto, onde esse pássaro está?
- Eram árvores!
- Árvores? Parecem bonitas... Onde existem árvores?
- Não existem mais...
- Por quê?
- Os pássaros levaram as sementes dessas plantas para outros lugares. Quando terminaram os pássaros, em poucos anos as árvores morreram, porque a cada árvore que morria, mais calor ficava e mais outras morriam. Sobraram muitos insetos, porque não havia pássaros para comê-los. Então eles comeram as flores que restavam. Depois até os insetos morreram.
- Ah... E essas coisas peludas que aparecem na foto?
- Eram animais de estimação.
- Animais? O que é isso?
- São seres parecidos conosco, só mais dóceis, menos brigões e sempre fiéis.
- Posso ter um?
- Não, minha querida. Eles foram todos mortos. Diziam que a gripe das aves poderia contaminá-los e em seguida eles poderiam nos contaminar.
- Mas todos esses animais eram de ter em casa?
- Não. Haviam outros nas florestas, mas com a morte das árvores eles também morreram.
- Vovô, parece que não adiantou esses homens fazerem a vacina.
- Só para eles terem mais dinheiro por um tempo, depois não tinham mais onde gastá-lo e acabaram morrendo de tristeza.
- Eu também estou triste, vovô.
- Todos estamos, querida. Vista agora sua roupa contra os raios ultravioleta, seu capacete com oxigênio, suas botas anti-radiação e vamos passear no deserto. Não esqueça de levar suas proteínas sintéticas para o lanche.


Eis que aparece a galinha verde mecânica e acordo chorando.

03 março 2006

Ouvi o Rio Parar

Em setembro de 2005, publiquei este texto, no meu segundo dia de blog, quando ainda quase ninguém me visitava. Como normalmente acontece, ele foi ficando para trás, para trás, como o silêncio que ecoa numa tumba de alguém enterrado vivo.
Ressucito-o então aos meus queridos visitantes.

Ouvi o rio parar no instante exato que delineei seus contornos sobre aquela ponte. Ao redor, vi o beija-flor no ar, imobilizado, para vê-la cruzar para o outro lado do rio. Então, lambi o cheiro do mar distante ao imaginá-la nua na areia de nossa praia secreta. Quando me atrevi a andar e correr e buscar seus lábios e me afundar nos seus braços, tive que gritar para pode lhe conter beijar prender atar, na fração de meu pensamento.
" Sem mais verbos! Cem mil versos não vão me fazer parar! Quero invadir, possuir seu universo e naufragar na imensidão de seu olhar! "
Em meio a turba que invariavelmente cruza esse caminho, minhas palavras flanaram e pousaram na água podre desse rio morto, sem que seus ouvidos, atordoados por meu ego e distantes de meu eco, distinguissem qualquer som. Quando me dei conta de tudo e do nada, em meu sorrateiro instante de possessão, quis buscar seus gestos de amor a tão poucos passos da perdição.
" Como posso saciar meus braços e entregar meus olhos para te fazer pisar e me cegar de amor? "
Ainda dobrava a esquina quando entendi que já era tarde para nunca mais ser o que nunca fui e cedo demais para desistir de lhe esperar de novo noutro lugar. São Paulo é assim: muita solidão vivendo junto, muito amor disperso em vozes, em olhares que nunca mais cruzarão, em corpos que se tocam em tocas profundas, em trens velozes, para nunca mais convergirem no tempo e no espaço.
Espaço... seu espaço poderá ser preenchido por amor fugaz. Mas o tempo, ah o tempo... esse permitirá as saudades do que não vivemos. Eu e você, seguindo a vida, ignorantes de nossos amores, saudosos de um futuro que já passou, em muitas camas, em muitos braços que não nos pertencerão.
Aí, numa noite fria de garoa fina, cruzaremos apressados pela Paulista e teremos a vaga lembrança de um instante preso no tempo. Baixaremos nossos olhares, suspiraremos profundamente e voltaremos para nossas casas, para levar nosso cotidiano de amor prático, vazio de essência e carente de uma loucura qualquer numa ponte qualquer de uma cidade qualquer, sem mais versos, sem mil versos para nos fazer voltar.