27 julho 2006

Além do Fim - 4ª parte

Ela olhava para aquele homem, o primeiro a entrar naquele buraco em que ela vivia. Não trazia homens para lá. Já apanhara muito na rua, já fora explorada, já se dera por uma pedra, até por cigarro, mas nunca deixara qualquer um deles entrar. Seu cão, que lhe acompanhava desde que se encontraram catando o mesmo lixo, era sua única companhia. Teve uma vez um bebê, que nasceu ali mesmo e que carregou por algum tempo pela rua. Numa noite, numa praça, louca por ter cheirado loló e fumado uma pedra, esqueceu-se dele e nunca mais o encontrou. Sorte dele. Quando trouxe de arrasto o homem para dentro daquele lugar nojento que lhe servia de abrigo no frio e na chuva, era como se tivesse encontrado sua criança e quisesse cuidá-la. Deve ter quebrado o pescoço, pensou ela, baseada no que aprendera em tantos atropelamentos e saques que presenciara. Estava bêbado, não tinha dúvida e só não morrera afogado no seu vômito porque ela sabia que um bebê se deita de lado e assim o pusera sobre umas caixas de papelão que recém recolhera na rua. Procurou em alguns lixos e encontrou alguns restos de comida. Estava arrumado o café da manhã de sua pensão, pensou ela. Voltou para ver como ele estava, dar-lhe algo de comer e alimentar seu cão. Escreveria alguma coisa para ele. Ela sabia pouco de escritas, mas gostava de rimas e se distraia com as poucas letras que conhecia. Talvez ele compreendesse porque tinha os olhos mais brilhantes que já vira. Com muito esforço ela o escorou contra um cobertor velho e apoiou sua cabeça na caixa onde ela guardava seus achados mais preciosos: revistas coloridas, brinquedos, algumas peças de roupa para os dias mais frios, folhas de papel e canetas. Assim, meio deitado, meio sentado, ela lhe enfiou na boca um pedaço de pizza frio, que ele devorou.
Ele sentia dor na cabeça, talvez estivesse machucado. Fome ele tinha, mas era diferente. Não havia a sensação do estômago, era de outro jeito: era como se fosse uma chance de viver. Ela tinha uma velha garrafa de refrigerante com uma água turva, que acomodou em seus lábios até que ele bebesse. Ela tomou da mesma garrafa, comeu da mesma pizza, assim como o cão lambedor. Queria dizer-lhe algo, mas não conseguia articular palavras, tampouco entender o que ela dizia. Ela pareceu entender que ele nada entendia. Talvez fosse estrangeiro, talvez surdo, talvez mal-educado. De estômago satisfeito, passou a perceber os odores, como se lhe restasse apenas esses sentidos: a visão de um lugar escuro onde uma mendiga lhe acolhia, o paladar de uma pizza bolorenta e o olfato de mofo, mijo e excremento. Pôde ler nos lábios dela um palavrão bem silábico e ela começou a limpar-lhe sem cerimônia. Teve certeza agora que estava nu, cagava e mijava sem controle, mas tinha alguém lhe cuidando. Por instantes o cão parou de lamber-lhe.

25 julho 2006

Além do Fim - 3ª parte


Na manhã seguinte, ele acordou com ela o olhando de muito perto, com as roupas dele na mão. Era bem provável que estivesse nu, mas não tinha sensação alguma além da cabeça e uma dormência no lado direito de seu ombro. O cão foi se aproximando e lambeu-lhe a cara sem cerimônia. Ela falou alguma coisa e ele não entendeu nada, além dos movimentos de seus lábios. Era uma morena de cabelo sujo, com dente faltando na frente, mas não era de todo feia. Tinha um rosto ossudo, mas de feições agradáveis, talvez pelo meio sorriso, entre seus lábios carnudos, que mostrava quando parava de falar. De imediato sentiu o gosto de fel na boca e foi lembrando-se por flashes do que havia ocorrido. Lembrou-se de como as luzes rodopiavam na rua, lembrou-se do carro aproximando-se e depois do asfalto visto de muito perto, de frente ao meio fio. Lembrou-se do cão, das mãos que lhe arrastaram e era tudo. Ela mostrou-lhe um cigarro amassado e ele fez que sim com os olhos. Em seguida, ela saiu e o deixou com o cachorro a lamber-lhe e com o cigarro queimando em sua boca sem que ele pudesse tirá-lo dali. Soprou-o como pode e o jogou perto do cão, que deu um salto e voltou em seguida. Não podia ver o quanto estava nu, porém a contar pela roupa amontoada ali perto, devia ainda estar de calças. Era um lugar fechado e do pouco que conseguia enxergar do chão de onde estava estendido, parecia ser um depósito abandonado, com uma janela basculante bastante alta por onde o sol se esgueirava entre dois prédios rentes à abertura. Via também umas telhas de zinco levantadas no lado oposto, que jogavam um raio de luz na parede descascada e cinzenta. Podia sentir o hálito do cão a respirar junto ao seu rosto.

21 julho 2006

Além do Fim - 2ª parte

Sleep, Salvador Dalí, 1937

No beco onde se escondia para queimar sua pedra, pouca luz entrava, porém o ruído de um corpo se estatelando na rua invadiu e ecoou em cada lata de lixo. Ela levantou a cabeça, largou a folha de papel pardo onde rabiscava qualquer coisa e, ainda zonza, viu o monte perto da entrada do bar que havia fechado há pouco. Seu cachorro levantou suas velhas orelhas e as baixou em seguida. Já não tinha tempo nem vontade de correr atrás de nada. Ficava ali, ao lado dela fitando-a. Levantou-se e foi até lá para ver se ele tinha morrido e se poderia aproveitar alguma coisa do morto. Sem qualquer ordem, seu cão a seguiu. Passou alguns minutos sem que o corpo se mexesse por si. Apenas seus olhos suplicantes moviam para cima e para baixo, para todos os lados.
Era o mesmo homem que ela espiara a pouco do fundo de seu beco, vomitando do outro lado da rua. Estava ali deitado e movia os olhos como se tivesse preso, amarrado. Estava caído de lado e seu vômito escorria com sangue pela boca. Ela não lhe disse nada, ficou fitando-o, andou ao seu redor e ele a seguindo com os olhos, sem mover a cabeça. O cachorro cheirou, abanou o rabo e ela sorriu. Não um sorriso para o homem e, sim, para o animal que balançava a cola para qualquer porcaria.
A rua permanecia vazia naquela madrugada. O carro que atropelara o homem nem freou; seguiu adiante com música alta deixando cheiro de álcool por todo lado.
O velho cão ainda curioso agitado, latiu uma só vez e ela decidiu ajudar o pobre coitado, que parecia mudo e inerte, além de, quem sabe, ter algo de valor que ela pudesse usar para comprar umas pedras. Pegou-o pelos braços e foi arrastando-o para dentro do beco até a entrada do buraco na parede onde ela vivia com o cachorro, oculta atrás de uma enorme caixa de lixo. Ele permaneceu de olhos abertos o tempo todo, o cão rodava, talvez por efeito do álcool para ele, do crack para ela, ou pelo modo banal que os cães têm de se afeiçoarem.

19 julho 2006

Além do Fim - 1ª parte

Homem Bêbado, Salvador Dalí, 1922


Na saída do bar as luzes dos postes rodavam como se fossem faróis suspensos. O vômito que era uma ameaça velada subiu à garganta e antes que pudesse achar um canto, rompeu-lhe os lábios e atingiu seus pés. O choro veio ao natural e suas lágrimas rolaram pela face, pela barba de uma semana de desleixo. O gosto de fel que invadiu sua boca alojou-se pelas narinas, quase o sufocando.
Conseguiu ainda andar até o poste, que teimava em desviar-se dele. Abraçou-o como faz o menino na perna do pai na multidão. Tentou olhar para cima, ver algo do céu, mas na cidade embriagada as poucas estrelas que se viam eram constantemente cadentes, feito ele.
Sentou-se no meio fio, passou a manga do casaco sujo na boca, na fracassada tentativa de parecer normal. As lágrimas deram lugar a um sorriso letárgico, que acumulava dobras na face, mas não ocultava o vazio de seu olhar.
Quis lembrar-se de como havia chegado ali, virou-se para trás e nem lembrou de que porta havia saído. Talvez uma mulher amada, talvez um filho morto, talvez um emprego perdido, talvez um talvez constante. Se tivesse bebido para esquecer, tinha atingido o objetivo, quiçá um pouco além.
Do bolso interno, sacou uma pequena garrafa, elegante, porém traiçoeira. O pouco que havia era de um uísque, ou cachaça, ou absinto. Naquele estágio, tudo tinha o mesmo gosto e o mesmo efeito anestésico.
Com a coragem que renasce no gole levantou-se para cruzar a rua e atingir a outra porta com um luminoso de Coca-cola. O automóvel não tomou nota da licença que o ébrio dá para salvaguardar os embriagados e jogou-o à frente do bar de boca no asfalto. O cheiro de álcool combustível que emanava do carro talvez fosse um atenuante para seu destino.

17 julho 2006

Álbum - Última parte


Alberto estava lá, sorriso largo, corpo esguio como se o tempo não lhe pesasse. Abraçou-me com energia, demonstrando toda a alegria que sentia em estar novamente de volta à vida que deixara para trás naquela soleira ao desfazer-se de seu passado de amor.
- Alberto, vou te levar a minha casa!
Ele não esperou que eu insistisse e foi entrando no carro. Andamos pela cidade e ele foi lembrando de cada esquina e relatando cada lugar onde estivemos. Ao passar na frente de uma sorveteria, ele pediu para parar e me convidou para saborear um sorvete. De início não entendi, mas lá dentro, em frente ao sorvete de pistache com creme, ele me segredou:
- Foi aqui que conheci Graça.
Baixei a cabeça e nada disse. Ele notou que fiquei diferente e me convidou para irmos.
Chegamos à casa antes que Graça retornasse com o menino mais novo da escola. Os garotos mais velhos viriam depois, da universidade. Toda a casa denunciava meu amor a quem ele tanto sonhou nesses longos anos, mas ele não percebeu. A imagem de Graça, vinte e um anos atrás era o que lhe iluminava as noites de solidão. Na foto de casamento, na foto com os filhos, em nenhuma delas ele percebeu quem era ela.
Foi quando Graça entrou pela porta que os dois se encontraram em olhares. Ela deixou cair as compras que carregava no meio da sala e ele a fitou, como se fosse uma alma a ser salva. Ambos me olharam e eu olhei prá cima, como que procurando uma corda.
- Alberto, essa é minha esposa, a Graça - disse sem graça.
- Graça? Tu te pareces em muito com uma Graça que conheci nessa cidade há muitos anos atrás - ele, visivelmente abalado, falou sem pensar.
- Oh, Alberto! Tu continuas o mesmo.
- Desculpem os dois, mas não consegui contar antes - resmunguei.
- Tu continuas o mesmo - ela repetiu. Me assustei.
- Rogério, porque tu não me contaste? Eu teria ficado muito melhor se soubesse que a Graça teve sua chance de ser feliz!
- Tu continuas o mesmo... - será possível? Ela só vai dizer isso?
- Todos esses anos, sofri por ti, Graça. Sofri pela esperança que te tirei, pelos filhos que não tivemos...
- Tu continuas o mesmo, Alberto.
Enquanto ela falava, não percebia seus olhos. Em todos esses anos de amor, de vida a dois, nunca mereci aquele olhar suplicante, aquela voz fragilizada.
- Sim, o mesmo Padre Alberto! Foi um grande prazer encontrá-los juntos!
- Vai jantar conosco, padre? - perguntei como quem dispensa o convidado.
- Não, amigo, tenho que catequizar uma tribo indígena em Roraima amanhã de manhã.
Nos despedimos em seguida. Alberto continuava o mesmo, Graça continuava a mesma, eu continuava o mesmo.
Em todos esses anos de amor, por muitas vezes os olhos de Graça foram minha luz, mas desse dia em diante entendi conheci o brilho verdadeiro, a luz infinita que não me pertence. Volta e meia, quando ela olha pela janela, no horizonte para o fim da rua por onde ele se foi, faíscas aparecem, mas nunca em minha direção. Viverei minha covardia, minha inaptidão de ser amado como Alberto é.

13 julho 2006

Álbum - 3ª parte


Foi num final de março, início de outono que aconteceu. Sem que nada sinalizasse, sem aviso, sem cerimônia. Mais precisamente, ontem, na rodoviária, encontrei Padre Alberto. Ou melhor, encontrei Alberto.
Ele me abraçou, lamentou termos nos distanciado tantos anos, reclamou do correio, da Internet, do Google e até da Divina Providência. Sentamos num bar, ele pediu uma cerveja e sem que eu pudesse falar a primeira palavra ele atalhou:
- Vim atrás de Graça!
Não sabia se lhe contava tudo, a foto que não foi rasgada, o encontro mágico, os filhos, as cartas não respondidas. Ele continuava o mesmo sorriso em pessoa, mais culto, mais simples, mais tudo o que sempre foi, apesar da mecha branca que denunciava os quase cinqüenta anos que ninguém lhe daria.
Com dificuldade, balbuciei:
- Graça?
Ele me falou das cisternas que inaugurou, das igrejas que ergueu, das crianças que salvou, mas que sempre, em todas as noites secas no sertão de Pernambuco, era em Graça que pensava.
- Sim, aquela da foto - ele ainda tentou me fazer lembrar - sabe onde ela está?
- Graça? - não conseguia dizer outra coisa.
Ele me falou então de como ela era, de seus olhos amendoados, de sua alma pura, gentil e valorosa. De quanto tinham em comum e de como foi difícil viver longe dela, mas que depois de ter servido tanto tempo a Deus, dava seu trabalho como feito e que queria agora recuperar seu passado.
- Casei.
Não contei com quem, mas me senti aliviado. Eu disse, ele que não entendeu, pensei. Ele me falou sobre amor, da vida que passou e sobre o que presenciou, casamentos, mortes, nascimentos, ódio, fé e abandono. Me perguntou sobre filhos e eu falei que meu primogênito era Alberto, como ele. Emocionado ele levantou-se e me abraçou longamente, como que agradecido, pela homenagem da forte amizade tantos anos adormecida.
- Conheço?
- Quem?
- Ela.
- Quem?
- Tua esposa, Rogério, quem mais?
- Minha esposa?
- Amigo, acho que bebemos além da conta. Vá para casa e amanhã nos encontramos, está bem?
- Claro, Alberto, claro. Amanhã? Aqui, pode ser?
- Ou na tua casa, se me convidares!
- Não, aqui está bom.
- Muito bem, amigo! Depois de Graça, tu eras a primeira pessoa com quem queria encontrar.
Não lembro com detalhes o que aconteceu nos minutos que se sucederam. Quando me dei por conta estava entrando em casa e sendo abraçado por Graça, que com seus lábios quentes me despertou. Disse que não estava bem, precisava de um banho e dormir. Ela sorriu e me disse:
- Encontrou amigos, meu amor?
- Sim - respondi sem pensar.
- O cheiro da cerveja justifica o cansaço. Durma bem!
Deitei com a dúvida de como contar para Graça e expor tudo o que me acontecera; como tudo que mais amava no mundo, poderia me fazer o pior dos homens caso se encontrassem.
Ainda estava fitando o teto, quando ela entrou para ver como eu estava.
- Amanhã vamos ter visita, meu bem - disse antes de apagar.

Ilustração: José Ricardo Viana (projeto "Mentes Coloridas")

10 julho 2006

Álbum - 2ª parte

Passaram-se algumas semanas quando encontrei a foto na minha gaveta e resolvi procurar por ela. A conhecia muito bem através de Alberto, mas pelas circunstâncias daquele amor e pela distância entre minha cidade e a dela, nunca a tinha visto pessoalmente. Eu poderia ter rasgado aquela foto naquele domingo de sol triste, quando deixei Alberto na soleira da porta da casa simples, onde mais tarde seria apanhado por outros amigos e levado à rodoviária. Poderia ter queimado, mas isso mereceria uma cena folhetinesca, a que eu nunca fui muito apreciador. Preferi entregar o passado a quem por justiça pertencia.
A casa era humilde, o jardim queimado pela primeira geada de maio, o dia cinzento como uma página de Goethe. Não havia campainha, porém a janela estava semi-aberta. À moda do interior, bati palmas. A cortina entreabriu-se o suficiente para ver os cabelos negros de Graça. Ao sair à porta, uma nesga de luz iluminou-lhe e pude conhecer a Maria, cheia de graça. Desconfiada ela aproximou-se.
Não falei nada, apenas estendi a mão e entreguei-lhe a foto. Ela esboçou um sorriso, que logo deu lugar a uma expressão de tristeza. Quando ergueu os olhos em minha direção, eu poderia me afogar naqueles olhos úmidos e morreria feliz. Por infindáveis frações de segundo nos olhamos até que ela me perguntasse como consegui aquela foto. Contei-lhe sobre Alberto, a despedida e da forma como ele me pediu para entregar-lhe a foto. Não falei sobre as outras opções que ele me dera, porque no fundo, pensando muito a respeito concluí que de fato ele me pedia que a entregasse, si o si, como diria um velho bolero castelhano.
Graça me agradeceu e entrou. Eu fiquei ali, embevecido pela presença forte de uma mulher altiva e de coração raso. Sabia que a história deles havia terminado um ano antes, mas me retive a olhá-la entrando na casa e fechando a porta. Não sei por quanto tempo fiquei ali prostrado até que ela voltasse à janela e me perguntasse se tinha mais alguma coisa para dizer-lhe. Fiz que sim com a cabeça só para que ela voltasse até mim e me convidasse para entrar.
Tudo o que Alberto me confessara sobre Graça era pouco para descrever seus gestos, sua voz e a enormidade de sua alma. Voltei mais algumas vezes a sua casa, até que a porta de seu coração rompesse as grandes lajes que Alberto deixara sobre todo o amor que ela tinha em si.
As cartas de Padre Alberto chegavam, mas eu já não as respondia. Falavam das aflições de um povo sofrido, das misérias aceitas como obra de Deus, da seca, dos anjinhos bebês mortos pela fome e pela desesperança de uma gente marcada para sofrer. Contava das agruras de trazer luz às trevas, mas não mencionava uma só palavra sobre o amor adormecido naquela foto ensolarada que me legou. Pensei em contar-lhe sobre o encontro que ele me proporcionou e achei até que ele aprovaria esse amor que em nós brotava, mas temi fazê-lo sofrer, ou, quem sabe, colocar à prova sua vocação. Temi que ele largasse crianças sofridas, tomasse o primeiro jegue e viesse resgatar sua Graça. Com o tempo as cartas foram rareando e, como se houvesse um erro de endereço, acabou por cessarem-se.
Há vinte anos atrás, mulheres de trinta não esperavam mais por padres que lhes abandonavam. Eu joguei todo o amor que armazenei por tantos anos em quem estava pronto para amar. Escrevi poemas, fiz caminhos de pétalas, sussurrei Neruda, e a amei com cada poro de meu corpo destilando o amor que emanava em sua direção. Nunca lhe falei das cartas não respondidas e demos ao nosso primogênito o nome de Alberto.
Os invernos continuaram a gelar as madrugadas do Rio Grande, eu e Graça nos aquecemos todos esses anos, orando para que a felicidade viesse pelos caminhos de Deus, como nos aconteceu. As primaveras se sucederam e trouxeram aromas e recompuseram os jardins sofridos. Nos verões juntamos os meninos e fomos para Tramandaí, Torres, Santa Catarina. Suamos em noites quentes queimando nossos lençóis num fogo que ressurgia a cada instante, uma chama que alimentava de amor nossos dias.

05 julho 2006

Álbum - 1ª parte

Para quem gosta de contos em série, republico o primeiro, iniciado em outubro de ano passado...

Álbum

- Guarde prá mim essa foto... Ou queime, ou rasgue, ou devolva para ela.
Fins previstos são os mais tristes. É um fim desde que se inicia. É um rio que inexoravelmente entregar-se-á ao mar. Na porta da casa, onde me entregou aquela foto havia uma chave trancando o passado; da mesma porta onde um dia vislumbrou um futuro distinto, conflitante. Não perguntei seus porquês, não questionei suas certezas, não obstei suas dúvidas. Fui fiel a seu arbítrio e sorri. Entendi cada instante daquele ato. Conheci seus passos de longos anos e sabia que havia dor no seu gesto.
A foto estava inteira, como se tivesse sido retirada há pouco de um porta-retrato onde foi muito bem cuidada, talvez até cultuada. A data era irrelevante; poderia ter sido qualquer dia dos dez anos anteriores. Nela, um abraço contido, preso no tempo, revelava um sentimento ainda presente e proibido. A mulher alta, de cabelos negros, não era de uma beleza estonteante, mas tinha uma verdade que transbordava à imagem. Ele, com seus olhos nela, revelava um laço perene, porém incompleto. A luz daquele dia, na foto, era forte, dando a todos os contornos um brilho sem sombras, diferente daquele momento, quando a luz da tarde deitava triste como qualquer fim de domingo.
Para mim, inexplicavelmente, era como se estivesse presenciando um capítulo de um livro que nunca li, uma história que não me pertencia, porém que fui escolhido para guardá-la. Nossa amizade de quase dez anos nos rendeu momentos de cumplicidade, que nessa hora foi coroada. Conversas em viagens pelo interior, em bares, regadas à cerveja, vinho e discos. Músicas, livros, segredos, conversas sérias em sorrisos largos. Camaradagem.
Quando conheci Alberto ele já era assim, culto, simples, despojado de malícia e pleno de bom humor. Eu, pouco mais que um menino, encontrei nessa amizade uma base, um ouvido, um apoio. Podia rir por nada, mas sempre acompanhado. Podia dançar e beber com todas as meninas da festa sem que tivesse que ter aprovação do camarada, ou a crítica gratuita dos amigos de ocasião.
Nunca imaginei que um seminarista pudesse ser divertido ou que pensasse noutra coisa senão em Deus. Cheguei a pensar que sua própria história o tinha trazido ali através da única maneira plausível para que alguém tivesse acesso à educação nos rincões do Rio Grande, há trinta anos atrás. Como muitos outros do rebanho, que pelos seminários encontraram a saída da lavoura para a cidade, pensei que Alberto apenas tinha aproveitado a chance.
Quanto mais o conhecia e me inteirava de suas passagens, mais tinha certeza de seu destino. Ele talvez não soubesse, mas eu sentia há muito tempo que ele nasceu para difundir esperança. Na pobreza onde foi criado, nos campos de cima da serra, onde o inverno castiga até novembro e congela o pasto em abril, havia de germinar um pinheiro sólido, com casca resistente, mas de galhos sensíveis, onde o peso das geadas podiam quebrá-los várias vezes, sem que o destruísse.
O carinho de um pai passa muitas vezes pela dor. Quando Alberto foi morar com os tios, numa cidade um pouco maior e com mais condições de educá-lo não foi porque sua mãe ou seu pai lhe soltassem ao destino; ao contrário: o pesar da ausência foi o preço para permitir ao filho um futuro diferente dos seus. Longe deles, poderia vivenciar mais oportunidades, mas foi pela porta da Igreja que ele desenhou sua sina. Através dela poderia ajudar outras famílias a permanecerem unidas, mesmo que isso tivesse um preço.
Graça. Maria das Graças. Não sabia bem como se conheceram, mas um dia Alberto me contou sobre ela. Talvez fosse quem lhe mostraria um caminho que o afastaria da igreja ou quem o levaria para dentro para casarem-se. O nome não poderia ser mais apropriado para testar sua vocação. Ah, a vocação! A dúvida de quem segue esse caminho; a busca incessante da resposta definitiva. A graça de encontrar seu destino ou o destino de encontrar Graça em seu caminho.
Os anos passaram e a resposta foi adiada, porém a formação do sacerdote estava sendo cumprida. Chegaria o derradeiro momento da decisão. Conversávamos sobre isso, mas preferi ser Pilatos e deixar ao amigo o leme de seu próprio barco. Ser sábio quando se fala da própria vida é impossível e Alberto optou. Maria das Graças tem seu lugar no passado e lá ficaria independente de fotos, bilhetes ou sensações pelo corpo que herdaria para sempre.
No dia seguinte nasceria o futuro. Padre Alberto chegando ao interior de Pernambuco, no agreste, distante da luz, dos bailes, das caminhadas pela noite conversando sobre Graça, distante do Alberto que ficou me acenando da porta, sabendo que eu levava comigo seu passado. Na foto via Graça, via graça, via um lapso de tempo perdido na história, quando um homem de bom coração, por regras feitas por homens, teve que optar entre servir ao povo e a Deus, negando sua condição humana, sem perder a ternura.