31 agosto 2006

Fala, Matilde - 3ª parte

Voltando para Casa, Fernando Botero
- A Joice não é filha do Genivaldo.
Dona Matilde, a viúva mais apaixonada, depois de dez anos de luto do Deputado Genivaldo Correia Dornelles e Castro, resolveu confessar sua traição tão bem guardada. Foi durante a missa de Ramos, justamente durante o ofertório, antes do sino bater confirmando a palavra do Senhor. Sua voz, muda já há algumas semanas, ecoou pela nave principal da catedral e perdeu-se no burburinho que se seguiu. Sua filha mais velha, Joice Dornelles e Castro Monteiro, aquela que por muito tempo havia sido a primeira dama do município, levantou-se antes de todos ainda ajoelhados e gritou um "NÃO!" sonoro e bateu em retirada da igreja. Poderia ter sido um delírio de Dona Matilde, poderia ser um mal-entendido qualquer, mas, de repente, a suspeita sepultada desde a infância martelou-lhe o coração e não houve quem a detivesse na escadaria em frente ao templo. Seus dois filhos ainda saíram atrás dela, mas não detiveram a louca e desenfreada corrida pela avenida, que só parou quando ela estatelou-se contra o ônibus 2712, da Viação São Judas, que fazia a linha para o cemitério.

28 agosto 2006

Fala, Matilde - 2ª parte


- Raspei a buceta quando casei.
Aquela declaração da avó, no meio do almoço de domingo, quando sua filha lhe alimentava perante os netos e bisnetos foi o primeiro escândalo. Alguns riram disfarçadamente, outros deixaram cair os talheres. A bisneta Aninha, de três anos perguntou:
- Pai, o que é buceta?
A resposta veio pelo apelido que a menina aprendera para rotular sua própria vagina infantil:
- Pepequinha, Aninha – disse o pai quase sussurrando.
- Por que a bisa raspou a pepequinha? – quis saber a pequena.
O pai disfarçou, agachou-se junto ao ouvido da menina e disse para perguntar a sua mãe, mais tarde. A pequena curiosa não quis esperar. A noção de depois para ela era algo vago, que poderia durar uma eternidade, talvez até ficar velhinha como a bisavó.
- Mamãe, por que a bisa raspou a pepequinha? – gritou a menina do outro lado da mesa.
As risadas pipocaram pela mesa, menos no rosto da Dona Matilde, que voltou ao ser estado letárgico, deixando escorrer um pedaço de macarrão pelo canto da boca.

25 agosto 2006

Fala, Matilde - 1ª parte


Alta Sociedade, Fernando Botero
Na saída do consultório, tiveram consciência da inversão de hierarquia que a idade traz. Andréia, a neta, tentando ser pragmática, foi a primeira a falar:
- Mamãe, a vovó está velhinha... É natural que chegássemos a essa situação algum dia. Alzheimer não é a melhor forma de envelhecer, mas hoje em dia podemos conviver com a doença, além do que temos uma família grande e unida.
- Filha, mamãe está tão bem fisicamente, apesar da bengala. O que eu não esperava era que de um dia para o outro, tivesse que vê-la catatônica como está. Fico preocupada com a qualidade de vida que ela terá daqui para a frente.
- Já eu me preocupo mais com a sua saúde, mamãe. Você já está com 58 anos e terá que cuidar da vovó como se ela fosse uma criança. Graças a Deus, temos condições de contratar uma enfermeira e é o que faremos imediatamente.
- Darei todo o carinho que ela sempre me deu.
Vovó Matilde era uma octogenária, mas até o ano anterior aparentava excelente saúde. Depois de uma queda, teve que colocar uma prótese no joelho, mas isso havia acontecido há vinte e cinco anos atrás, quando ela tinha somente sessenta anos, e soube aproveitar muito bem a vida depois disso, viajando o mundo com o falecido por alguns anos e, depois da morte dele aos setenta e cinco, com seus filhos e netos. Porém, há alguns meses, começaram os primeiros sinais da doença, como esquecimentos, conversas desconexas e algumas atitudes que surpreenderam a família.
Hoje, depois do atendimento médico, andava apoiada no braço da filha, em silêncio, como se tivesse distraída. Para entrar no carro, sua neta apoiava a mão sobre sua cabeça e ela flexionava os joelhos, olhando para cima, como se não entendesse de onde vinha aquela pressão para baixo.

23 agosto 2006

Tabela Prática da Vida Humana



Quanto vale a sua vida? Depende de sua nacionalidade, etnia e religião. Explico...

Se você é um americano e perdeu alguém nos atentados de onze de Setembro, em troca de seu ente querido você tem o direito de receber sessenta corpos iraquianos ou afegãos. Não é ótimo?

Se você é israelense e tem um primo soldado que seja seqüestrado, a promoção é imperdível. Sem que ele seja morto, você pode receber cem corpos libaneses, ou, pasme, até quatro corpos brasileiros! Só não pode escolher, nessa promoção só valem corpos de origem árabe.

Se você é africano, poderá participar do PRETHU (Programa de Retirada e Extermínio Total de Humanos). Reúna vinte amigos que também sejam jovens, negros, famintos e soros-positivos e poderão ser enterrados numa mesma vala comum, haja visto que ainda haverá oitenta outros para enterrá-los. Mas aproveite logo, pois em breve será o contrário. Serão só vinte para enterrar os outros oitenta que morrerão de fome ou falta de assistência às vítimas da Aids.

Agora, se você é morador do Canadá, Nova Zelândia ou da Europa, a cotação está ótima. De cada cem mil habitantes, menos de cinco serão assassinados no próximo ano. Se for brasileiro, carioca, ou mesmo habitante de qualquer cidade satélite das metrópoles brasileiras a cotação está em cem mil por cinquenta no mínimo. Ou seja, a cotação está dez por um. Imagine só: de cada morto branquinho você recebe imediatamente dez corpos cheios de ginga e alegria! Uma barbada!

18 agosto 2006

Palanques


O velho político estava sorridente na esquina mais movimentada da cidade. Entregava seus folhetos com um sorriso largo, passava a mão na cabeça das crianças, cumprimentava os mais idosos como se fossem conhecidos de longa data. Justamente quando pegava no colo uma menina de vestido rosa e cabelo encacheado, ouviu um grito vindo do anonimato que encoraja as verdades e debochava da mentira:
- Corrupto!
A mãe ainda conseguiu aparar a criança que do braço do velho senhor despencava. Como numa sinfonia de Beethoven, todos os ruídos pararam e ficaram de prontidão para o próximo compasso.
O velho levantou a bengala e desafiou:
- Quem disse isso?
As pessoas da primeira fila faziam que não com a cabeça, com o dedo indicador, até com o pé uma senhora negou. Um cachorro de rua que ali rondava chegou a dar um latido, mas foi logo inocentado pelo timbre de voz. Entreolhavam-se enquanto o burburinho aumentava. O velho voltou a perguntar:
- Quem foi que disse isso?
- Fui eu! – uma voz rouca veio do meio da multidão. Dava para escutar o barulho que faz o sinal ao mudar de cor no instante seguinte à declaração daquele outro velho de estatura baixa, de bigode branco e fino, com sua bengala metálica.
A multidão, como que comandada por um diretor de cena, foi se abrindo até que os dois se encararam com seus panfletos nas mãos. O velho baixinho e desafiador, trazia no peito o símbolo de seu partido, logo abaixo de sua foto, de uns 30 anos atrás, quando ainda tinha algum cabelo no meio da cabeça, onde agora jaz uma pobre verruga, que, por ironia, ostenta um grosso chumaço de cabelo negro.
- Só podia ser Vossa Excelência Venceslau de Araújo, o comunista mais gatuno que já vi!
- Vou te perseguir até teu túmulo, velho corrupto, ladrão, fascista de uma figa!
- Olha quem fala, olha quem fala!... Ainda tenho aquelas fotos de Nova Iorque onde Vossa Excelência e eu fomos juntos e que o senhor só queria andar pela noite e dizia que estava estudando a segurança pública!
- Benevides Madureira, o santo homem que conseguiu verbas para erguer três ginásios de esporte para dez mil pessoas cada um, numa cidade que tinha apenas dois mil habitantes!
As bengalas eram balançadas feito espadas. A saliva de um já se aproximava dos óculos do outro e os passos arrastados já tinham sido desperdiçados na mesma direção. Aos berros que estavam, seriam ouvidos a uma quadra de distância. As pessoas assistiam à cena, alguns aplaudindo, outros vaiando, outros pasmos em ver figuras tão conhecidas na cidade digladiando em insultos.
- Deputado Venceslau, ainda com aquele slogan de ajudar aos miseráveis? Vossa Excelência não se esqueceu de que a verba que serviria para erguer o hospital de pronto socorro foi parar em vossa fazenda em Goiás?
- E o senhor Madureira, que dizia que a educação era fundamental, o que fez com o dinheiro que recebeu das empreiteiras que forjou vencedoras das licitações para receber seus quinze por cento, seu ladrão sem vergonha? O combinado era dez e Vossa Excelência quis mais, seu mau caráter!
- É fácil dizer que eu sou mau caráter, quando o digníssimo colega usou de documentos falsos para vencer a licitação que asfaltou a estrada que vai até a sua fazenda!
- Pelo menos não vendi minha fazenda para a reforma agrária e depois expulsei os colonos com meus jagunços!
- Claro, o nobre deputado mandava matar e nunca foi pego, porque pagava muito bem os juizes!
Enquanto tudo isso transcorria a população ria, aplaudia e gritava vivas ora para um ora para o outro.
- Não tenho mais idade para ser ultrajado desse jeito!
- Sua velha onça vermelha, porque não se aposenta, já que o ilustríssimo colega recebe aposentadoria desde os vinte e oito anos?
- E Vossa Excelência, que não se aposentou e ainda recebe salário de quatro repartições públicas?
O povo vibrava com o bate bocas instalado. Faziam comentários, gargalhavam, vaiavam. Meia hora depois o episódio tinha acabado e o povo seguia seu curso, feito um rio que se joga ao mar e não sabe mais de onde veio tanto destroço de enxurrada.
Passado um mês, estavam os dois no mesmo palanque, rindo abraçados, apoiando o mesmo candidato à presidência, felizes por estarem re-eleitos.

16 agosto 2006

Além do Fim - última parte


[Ascensão, Salvador Dalí, 1958]

Os dias se revelavam entre as claridades que se insinuavam pelas frestas, alternando luas, sóis, nuvens. Compreendia as variações do tempo pela luz e pelo vento que lhe batia no rosto. Se aconchegava no calor que ela lhe oferecia sob o cobertor imundo que a aquecia e aliviava o frio das orelhas dele. O cão, testemunhava à distância o amor e, quando dava, vinha lamber-lhe o rosto sem que ele se incomodasse. Ela, de tão feliz que estava, passou a sorrir na rua e chamou a atenção do policial que lhe seguiu até a alcova. Ao deparar-se com o homem lá deitado, não deu tempo para que ela o carregasse para outro lugar. Passou um rádio para a patrulha e logo apareceu uma ambulância para levá-lo dali perante uma multidão de bêbados que saíram dos bares daquela rua, onde as luzes confundem os sentidos dos desesperados. Ela e seu cão ainda correram e choraram atrás do carro e por pouco não foram atropelados no sol do meio dia, já na avenida cheia de restaurantes logo adiante, onde as pessoas a olhavam com cara de escárnio e nojo. Ele foi levado para um hospital caro e, lá, pessoas bem vestidas apareceram e pareceram reconhecê-lo.
Hoje de manhã, no quarto branco e limpo de um hospital, uma mulher de olhos azuis e gelados surgiu ao seu lado, o que provocou-lhe náuseas. O sorriso que ela lhe deu era transparente e vazio, como um falso amor. Em algum lugar da cidade, deixara para trás sua vida e, em seu silêncio, virou os olhos úmidos para a janela e sorriu: finalmente tinha do que lembrar-se.

14 agosto 2006

Além do Fim - 10ª parte


[O Homem Invisível, Salvador Dalí]
Foi quando o rato já estava para atacar-lhe, rente ao chão, que o cachorro entrou e espantou o bicho. Ela ainda o viu esgueirar-se por um buraco na parede junto ao piso. Ela sabia que aquele lugar não era só dela, mas não compartilharia o seu homem, mesmo que fosse com uma ratazana de esgoto. Com esforço, ela ergueu-o como pode e ofereceu-lhe batatas fritas e frias. Ele comeu devagar enquanto a mirava nos olhos. Ele não lembrava de absolutamente nada que tivesse acontecido antes de estar na calçada, olhando para trás, procurando a porta de onde havia saído. Mesmo assim, inerte que estava, sentiu uma sensação de alívio ao vê-la, que seria impossível expressar, mesmo que tivesse de volta os movimentos e as palavras. Tinha apenas os olhos e deles deixou correr uma lágrima que ela aparou com um beijo. Ela lhe dizia algo, enquanto pegava novamente uma folha de papel e escrevia:

Aqueles sinais embaralhados eram uma ponte que se estendia, além da troca de carícias. O que era três virou a letra E que juntou com a letra A que já descobrira e um pouco mais ele entendeu. A intimidade instalou-se quando seus olhos encontraram o caminho dos lábios e as palavras foram ficando claras, como fica o desejo atrás das pálpebras.

11 agosto 2006

Além do Fim - 9ª parte

[O Primeiro Dia de Primavera, 1922-23, Salvador Dalí]
Antes de amanhecer era a melhor hora para achar comida: os restaurantes e bares, a algumas quadras dali, atulhavam suas lixeiras com fartas porções dos restos que sobravam nas mesas. Ela levantou-se, colocou seus trapos mais sujos, que lhe rendiam as melhores esmolas, esfregou sua cabeleira no chão, olhou para seu homem deitado dormindo ali perto, chamou o cão que lhe lambeu a mão e a acompanhou. Saiu pelo buraco na parede, puxou a lata de lixo para frente da entrada, carregou no ombro o seu saco de ráfia imundo e foi à luta. Lembrou que, agora, havia mais alguém para dar de comer e que deveria mantê-lo bem alimentado. Depois que perdera seu filho na rua, aprendeu a não cheirar loló e fumar uma pedra na mesma noite. Aprendeu também que dói perder alguém. Ela não era uma mulher que chorava a perda de um filho, tinha que sobreviver à dor e principalmente à fome. Andou pela rua com seu cão que volta e meia ia à frente como se fosse um farejador para indicar-lhe onde havia comida. Ele parava em frente às lixeiras e abanava a cauda, como que a convidando para o banquete. Volta e meia alguém se livrava de uma culpa qualquer e lhe atirava uma moeda. Raramente lhe punham na mão. Esse pouco dinheiro servia para qualquer droga que encontrasse ou mesmo para não apanhar da polícia. Mais rápido que de costume, já tinha comida para aquele dia e tinha que voltar ao seu canto, porque seu homem poderia estar precisando dela.

09 agosto 2006

Além do Fim - 8ª parte

[A Persistência da Memória, 1931, Salvador Dalí]
Quando acordou, ele não sabia se havia dormido, quanto tempo havia passado, se havia sonhado, se tudo aquilo não tinha sido fruto um tremendo porre. Por esse motivo, em meio a escuridão, preferiu ficar de olhos fechados, esperando pelo que poderia acontecer-lhe. Lembrou-se de um cão vagabundo, do cheiro de álcool na rua misturado com óleo, de uma mulher sem um dente e de corpo escultural. A dúvida que paira sobre o instante em que se está entre o sonho e o despertar apossou-lhe a mente e ele teve medo.
Foi quando sentiu uma lambida na boca que constatou que tudo aquilo era real. Lá estava o cão no meio do breu a lamber-lhe como se fosse um doce. O que poderia ter sido um sonho, mostrou-se real. Lá estava ele, naquele lugar fétido, olhando a lua que se esgueirava de fresta em fresta, na curiosidade que só a ela é permitida.
Deitado, meio de lado, não se movia e lembrou-se que, no que parecia ser sonho, estava paralizado. Tentou gritar, e se calara. Tentou mexer-se e nada. Pôde sentir a respiração da mulher ali perto. Ao ver o dorso, que na fraca luz do luar parecia uma pintura surrealista que não pertencia àquela tela de abandono, inesperadamente sentiu-se em casa. Acordara-se novamente para o silêncio, mas não lhe cabia divagar sobre o ontem, porque mesmo o passado estava petrificado no tempo e nada mais havia antes da náusea que sentiu deitado no asfalto.

07 agosto 2006

Além do Fim - 7ª parte


[Ainda, Salvador Dalí]

Não hesitou em usar daquele homem a sua disposição: buscou da melhor água que encontrara, diluiu um resto de sabonete que guardava para ocasiões extremas, como quando precisava usar seu corpo para arrumar alguns trocados. Tratou de lavar-se, de banhá-lo e acariciá-lo enquanto esfregava-o por inteiro, ali deitado na penumbra da madrugada, que a lua lhe presenteara enquanto jogava seus raios para dentro daquele lugar.
Mal sabia ele, que seu cérebro comandava músculos involuntários cujo prazer negava a si próprio, mas esbanjada em pulsações para ela. Ela dançou sobre ele, de olhos bem abertos, para não perder nada do homem de pele alva e pêlos negros, que se espalhavam da barba até o pé, formando uma cruz sobre o peito, suando inteiro o gosto do sal do amor, do qual deliciou-se pelo tempo que seu desejo lhe permitiu. Ainda respirava fundo quando lhe deu seu sexo para ele saciar o paladar de seu gozo e sentiu que a língua dele tremia em suas entranhas até fazer-lhe novamente gozar. Do lado, o cão sossegara, fora até a entrada e ficara lá de guarda, como o protetor do amor irremediável. Depois, ela levantou-se, deitou-o novamente e o viu sorrir, entre o suor e os fluidos que lhe deixou pela barba. Nunca havia escolhido alguém para amar, sempre dera em troca de algo e agora tivera um sexo completo de alguém que nada, absolutamente nada poderia dar-lhe em troca, a não ser o tesão do corpo inerte. Ou quase.
A lua, por sua vez espreitava o silêncio e jogava sombras iverossímeis na parede, antes de arrancar de suas peles o brilho suado de corpos que acabaram de arder.

03 agosto 2006

Além do Fim - 6ª parte


[Sonhos da Madrugada, Salvador Dalí, 1923]

Ele, nu, sem entender aquele jogo de letras e números que ela deixara ao alcance de sua visão, fitava o cão, que lhe abanava o rabo. Seus olhos melhor acostumados com a fraca luz que entrava pelos buracos daquele lugar, puderam reparar no vira-latas que lhe servia de guarda. Era de uma cor amarelada, quase laranja, com alguns sinais brancos encardidos no pêlo. A raça indefinida poderia ter algo de labrador, de pastor alemão, talvez até de cocker. Um cão velho, que lhe lambia o rosto e se deitava sobre seu braço caído que formigava. Voltou os olhos para o pedaço de papel pardo tentando decifrar o enigma, que muito bem poderia ser algo de louco, como ela lhe parecia olhar. Aquele quatro poderia ser uma letra A... Ele ainda divagava sobre o sentido que poderia haver naquilo, quando ela voltou com duas garrafas de água, com um sorriso largo, que apesar do dente ausente, era branco. Enquanto lhe falava coisas indecifráveis, foi tirando a sua própria roupa e mostrou um corpo surpreendentemente bem feito, atrás da sujeira que ela agora tratava de remover na água parda que trouxera. Um aroma adocicado surpreendeu-lhe o olfato. Depois, ela montou sobre ele e foi despejando a água, que escorria pelo corpo sem que ele nada sentisse, além da aflição de estar com uma mulher sobre suas carnes sem tato, como se seu corpo pesasse toneladas e não pudesse mover-se. Foi quando a língua dela invadiu sua boca que seus olhos fecharam e caiu num mundo interior, onde ele tinha tentáculos que a envolviam, onde lhe enroscava pela cintura e flutuava num limbo, pleno de estrelas que cintilavam a sua volta. Manteve-os fechados e deixou que sua boca fosse o seu céu e entregou-se a mulher que lhe acariciava as orelhas e lhe engolia inteiro. Sentiu que o suor lhe escorria da cabeça e se misturava a saliva. Sentiu o gosto do sexo que ela lhe trazia a boca, sentiu que alguma maneira ele lhe correspondia ao desejo frenético que não tinha chão, nem teto, nem tato, nem tino.

01 agosto 2006

Além do Fim - 5ª parte



Segunda Dimensão, Salvador Dalí

Ela não podia crer naquilo. Um homem bonito, que apesar de estar com a roupa suja, se via não serem roupas velhas. Como poderia ter chegado àquele ponto? Um bêbado caído na sarjeta, recolhido por uma mendiga que vivia de pequenos furtos com seu cão velho, que só servia para dormir e andar com ela pelas lixeiras. Um homem que não falava, comia bem, cagava bem e não movia nada além dos olhos. Depois daquela sujeira toda, pegou uma camiseta velha de propaganda política que tinha e limpou a merda toda. Pôde ver o homem nu, pois a cueca que lhe tirou já não servia pra mais nada. Viu o corpo inerte, porém bem feito, com um cacete bem grande que lhe deu um arrepio entre as pernas. Porém, daquele outro bêbado caído sobre um monte de pêlos mijados era natural que nada pudesse esperar. Mesmo assim, longe dos olhos dele, aproveitou para pegar-lhe com a mão, apertar-lhe e sentir o peso de suas bolas, coisa que nunca pôde fazer quando dava para homens que lhe dessem o prazer da droga. Limpou-o dentro do possível, derramou da água, esfregou e pensou que talvez esse homem mudo, inerte e bonito pudesse servir para alguma coisa. Antes de sair, escreveu-lhe: