05 julho 2006

Álbum - 1ª parte

Para quem gosta de contos em série, republico o primeiro, iniciado em outubro de ano passado...

Álbum

- Guarde prá mim essa foto... Ou queime, ou rasgue, ou devolva para ela.
Fins previstos são os mais tristes. É um fim desde que se inicia. É um rio que inexoravelmente entregar-se-á ao mar. Na porta da casa, onde me entregou aquela foto havia uma chave trancando o passado; da mesma porta onde um dia vislumbrou um futuro distinto, conflitante. Não perguntei seus porquês, não questionei suas certezas, não obstei suas dúvidas. Fui fiel a seu arbítrio e sorri. Entendi cada instante daquele ato. Conheci seus passos de longos anos e sabia que havia dor no seu gesto.
A foto estava inteira, como se tivesse sido retirada há pouco de um porta-retrato onde foi muito bem cuidada, talvez até cultuada. A data era irrelevante; poderia ter sido qualquer dia dos dez anos anteriores. Nela, um abraço contido, preso no tempo, revelava um sentimento ainda presente e proibido. A mulher alta, de cabelos negros, não era de uma beleza estonteante, mas tinha uma verdade que transbordava à imagem. Ele, com seus olhos nela, revelava um laço perene, porém incompleto. A luz daquele dia, na foto, era forte, dando a todos os contornos um brilho sem sombras, diferente daquele momento, quando a luz da tarde deitava triste como qualquer fim de domingo.
Para mim, inexplicavelmente, era como se estivesse presenciando um capítulo de um livro que nunca li, uma história que não me pertencia, porém que fui escolhido para guardá-la. Nossa amizade de quase dez anos nos rendeu momentos de cumplicidade, que nessa hora foi coroada. Conversas em viagens pelo interior, em bares, regadas à cerveja, vinho e discos. Músicas, livros, segredos, conversas sérias em sorrisos largos. Camaradagem.
Quando conheci Alberto ele já era assim, culto, simples, despojado de malícia e pleno de bom humor. Eu, pouco mais que um menino, encontrei nessa amizade uma base, um ouvido, um apoio. Podia rir por nada, mas sempre acompanhado. Podia dançar e beber com todas as meninas da festa sem que tivesse que ter aprovação do camarada, ou a crítica gratuita dos amigos de ocasião.
Nunca imaginei que um seminarista pudesse ser divertido ou que pensasse noutra coisa senão em Deus. Cheguei a pensar que sua própria história o tinha trazido ali através da única maneira plausível para que alguém tivesse acesso à educação nos rincões do Rio Grande, há trinta anos atrás. Como muitos outros do rebanho, que pelos seminários encontraram a saída da lavoura para a cidade, pensei que Alberto apenas tinha aproveitado a chance.
Quanto mais o conhecia e me inteirava de suas passagens, mais tinha certeza de seu destino. Ele talvez não soubesse, mas eu sentia há muito tempo que ele nasceu para difundir esperança. Na pobreza onde foi criado, nos campos de cima da serra, onde o inverno castiga até novembro e congela o pasto em abril, havia de germinar um pinheiro sólido, com casca resistente, mas de galhos sensíveis, onde o peso das geadas podiam quebrá-los várias vezes, sem que o destruísse.
O carinho de um pai passa muitas vezes pela dor. Quando Alberto foi morar com os tios, numa cidade um pouco maior e com mais condições de educá-lo não foi porque sua mãe ou seu pai lhe soltassem ao destino; ao contrário: o pesar da ausência foi o preço para permitir ao filho um futuro diferente dos seus. Longe deles, poderia vivenciar mais oportunidades, mas foi pela porta da Igreja que ele desenhou sua sina. Através dela poderia ajudar outras famílias a permanecerem unidas, mesmo que isso tivesse um preço.
Graça. Maria das Graças. Não sabia bem como se conheceram, mas um dia Alberto me contou sobre ela. Talvez fosse quem lhe mostraria um caminho que o afastaria da igreja ou quem o levaria para dentro para casarem-se. O nome não poderia ser mais apropriado para testar sua vocação. Ah, a vocação! A dúvida de quem segue esse caminho; a busca incessante da resposta definitiva. A graça de encontrar seu destino ou o destino de encontrar Graça em seu caminho.
Os anos passaram e a resposta foi adiada, porém a formação do sacerdote estava sendo cumprida. Chegaria o derradeiro momento da decisão. Conversávamos sobre isso, mas preferi ser Pilatos e deixar ao amigo o leme de seu próprio barco. Ser sábio quando se fala da própria vida é impossível e Alberto optou. Maria das Graças tem seu lugar no passado e lá ficaria independente de fotos, bilhetes ou sensações pelo corpo que herdaria para sempre.
No dia seguinte nasceria o futuro. Padre Alberto chegando ao interior de Pernambuco, no agreste, distante da luz, dos bailes, das caminhadas pela noite conversando sobre Graça, distante do Alberto que ficou me acenando da porta, sabendo que eu levava comigo seu passado. Na foto via Graça, via graça, via um lapso de tempo perdido na história, quando um homem de bom coração, por regras feitas por homens, teve que optar entre servir ao povo e a Deus, negando sua condição humana, sem perder a ternura.

7 comentários:

EDUARDO OLIVEIRA FREIRE disse...

Realemente tem o do da palavra.

Anônimo disse...

Voltei, Silvio! Mas tentei entrar aqui um MONTE de vezes! Ou não abre ou, qdo consigo, o comentário não vai... putz. Vamos ver se agora consigo.
Como está vc, amigo?
Achei muito interessante este conto. É tão verdadeiro, com imagens tão próximas do cotidiano, que às vezes penso que são pequenos fragmentos de sua vida que vc coloca nas histórias.
Bom, mesmo, querido. A série "Atrás de seus olhos" é fantástica. E também sinto nela sua identidade impregnando os personagens. Será que estou "viajando" ou vc tem o dom do escritor que faz com que tudo pareça verídico, palpável, absolutamente real?
Beijooooooooooooooooooooo

EDUARDO OLIVEIRA FREIRE disse...

Sou do Rio de Janeiro...

http://dudu.oliva.blog.uol.com.br

Toque das ruas disse...

Sílvio Vasconcellos

Um escritor perdido na tela de um computador... Seu criação literária precisa disseminar e fazer parte do imaginário e acervo de mais leitores. Grande abraço.

Anônimo disse...

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Anônimo disse...

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Anônimo disse...

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