05 junho 2006

Atrás de seus olhos - Nádia

Sou a Nádia. Talvez eu conheça você, mas com certeza não lembrará de mim...
Trabalho nesse shopping há um ano e nove meses. Não foi muito fácil conseguir essa vaga, porque tinha muita gente querendo, mas como eu fiz o supletivo, consegui o diploma do ensino médio e me formei. Meu trabalho é muito importante, meu chefe disse. Tenho que manter tudo limpo na praça de alimentação. Se cair refrigerante, corro lá e limpo a mesa e o chão. Já sei distingüir se é diet ou não. Quando não é, o pano fica menos pegajoso. Já consegui até perceber que alguns que são diet ficam mais pegajosos que outros. Acho que não é tão diet assim. Bem, voltando ao meu trabalho. Eu também fico passando pano no chão. Sempre cai muita comida e eu tenho que recolher. É quando as pessoas me notam. Fico observando de longe elas me procurando até que me vêem em meu uniforme cinza e erguem a mão. Dou meu sorriso de estrela e entro em cena. Elas apontam para a comida como se fosse algo nojento. É até engraçado, porque há poucos minutos elas estavam comendo aquilo ali. Quando eu chego perto elas voltam aos seus afazeres, conversas e até discussões sem se importarem se eu escuto. É nesse momento que eu aprendo muitas coisas que vou passar a contar para vocês...
Aquele ali é o seu Robinson. Ele vem sempre em domingos à tarde, quartas e sextas-feiras. Domingos ele assiste o cinema. Primeiro compra os ingressos e, antes de entrar, come um pastel com água mineral sem gás. Sempre! Nas quartas e nas sextas ele traz uma pasta de um curso pré-vestibular. Acho que ele é professor, porque alguns adolescentes já comentaram que ele estava ali de novo e evitaram passar perto. Ele também faz que não os vê e assim eles se entendem. Nunca vi o seu Robinson acompanhado, mas sei que ele teve uma decepção muito grande há alguns meses. Uma mulher veio com um pacote de presente, atirou nele e saiu chorando. Eu peguei aquele embrulho que estava no chão e tentei devolver, mas ele já havia saído. Era uma corrente dourada e tentei devolver outro dia. Ele disse que não era dele. Não insisti e fiquei para mim. Ali que eu soube o nome dele, no cartão: "Te quero. Robinson".
Esses dois rapazes, ali adiante conversando, são gays. Eles disfarçam um pouco, quando tem mais gente com eles, ficam observando as garotas e contando histórias para elas. Um dia eu estava recolhendo um talher no chão e percebi que eles estavam de mãos dadas sob a mesa. Até achei bonitinho. Eles estavam se olhando e disfarçaram quando outro rapaz chegou. Um se chama Rodrigo e o outro Diogo. Eles têm muitos amigos e usam um penteado muito bem cuidado, com umas mechas loiras, os dois. O Diogo usa uma suíça mais pronunciada. As garotas vivem sempre olhando para eles com caras de apaixonadas. Mal elas sabem o jeito que eles amam. Devem ser alunos do seu Robinson, porque sempre desviam dele. Quando eles estão sós, conversam sobre filmes, livros e segredam coisas que não consigo ouvir, mas deve ser alguma coisa da intimidade deles porque de longe vejo os olhos brilharem.
A dona Eulália chegou. Estranho ela aqui essa hora. Ela sempre vem em sábados entre as duas e às quatro da tarde para conversar com suas amigas, tomar chá e comer um fatia de torta de limão. Elas são pessoas muito distintas. Elas ajudam os pobres através de um clube que elas freqüentam. Eu também sou uma pessoa pobre, mas ela nunca me cumprimenta. O que estará ela fazendo aqui hoje? A Dona Eulália em domingos é coisa muito rara. Ela cumprimentou o seu Robinson e seguiu adiante. Ela passou perto dos rapazes e eles comentaram alguma coisa sobre o vestido dela. Ela deve ter ouvido, porque acenou para eles. Realmente é coisa muito bonita, um tecido fino, chumbo, quase preto, combinando com a bolsa e os sapatos. Ela vai sentar-se na mesma mesa de sempre. Será que ela errou o dia? Difícil, pois foi ontem e ela esteve aqui. Olha lá, a dona Antônia também esta chegando. Deve ser algum assunto extraordinário. A Dona Antônia parece estar chorando. Faltou só a dona Francisca para o pequeno grupo estar completo. Queria levar um lenço para ela, mas ela nem me notaria por perto. Primeiro tenho que limpar o refrigerante que os dois amiguinhos viraram.
Lá vem da Aparecida, mulata bonita de cabelo bom. Fomos colegas de aula no primário. Ela nem me reconheceu ou fez que não. Ela tinha uma implicância comigo porque meu cabelo era ruim e o dela não. Ela deve trabalhar em algum lugar muito fino, porque usa umas roupas muito bonitas, até um pouco exageradas. O Rodrigo e o Diogo acompanham com os olhos. O Seu Robinson não vira o rosto, mas seus olhos seguem o requebrado da Aparecida quando ela segue seu caminho. Ela passa pela mesa das senhoras que estão de olhos vermelhos e tristes, mas por uma fração de segundo erguem a cabeça para vê-la passar. Não gosto quando ela vem aqui, porque sempre me dá trabalho. Ou é uma cerveja ou um prato de batatas fritas ou qualquer coisa assim que se vão ao chão na distração dos olhos atentos das pessoas que a seguem, homens e mulheres.
Mas o que vale a pena nesse trabalho é o seu Anselmo. Ele e seu menino, João Pedro, estão ali. Eles não vêm sempre aqui, duas ou três vezes por mês, mas fico ansiosa em vê-los. É que eles sempre me dão um sorriso, desde aquela vez em que o João Pedro virou um sorvete em suas calças e eu ajudei a limpá-lo. Ele deve ser separado, porque estão sempre os dois sozinhos. Eles riem muito enquanto o João Pedro conta as coisas da escola. Ele deve estar na primeira série. No dia dos pais eles almoçaram aqui e o menino deu um porta-retratos ao pai, desses feitos em escola. O seu Anselmo ficou emocionado e deu um beijo lindo na testa do filho. Confesso que deixei escapar uma lágrima. Eles sempre dão tchau para mim quando se vão. Eu fico de prontidão por ali para não perder o aceno que o garoto me faz com aquela mãozinha branquinha. Foi muito difícil descobrir o nome do pai, porque o menino naturalmente nunca lhe chamava pelo nome. Foi num dia que ele atendeu o celular perto de mim e percebi aquela voz encorpada atendendo ao telefone com seu próprio nome, ao invés de dizer alô. Cada idéia...
Ai... acho que ele está vindo até mim...

5 comentários:

Toque das ruas disse...

Estou certa que grande escritor gaúcho mora nesse blog:))

Wilton Chaves disse...

Olá!
Caro Silvio, você cada vez melhor.Passar em seu blog, é a certeza de encontrar com o prazer da leitura. Um grande abraço. Obrigado pela visita.

Anônimo disse...

Super color scheme, I like it! Keep up the good work. Thanks for sharing this wonderful site with us.
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Moita disse...

Olá Amigo
Estava viajando e vou começar a degustar o seu conto a partir de amanhã. Tou todo quebrado.

Abraços

Anônimo disse...

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