03 março 2006

Ouvi o Rio Parar

Em setembro de 2005, publiquei este texto, no meu segundo dia de blog, quando ainda quase ninguém me visitava. Como normalmente acontece, ele foi ficando para trás, para trás, como o silêncio que ecoa numa tumba de alguém enterrado vivo.
Ressucito-o então aos meus queridos visitantes.

Ouvi o rio parar no instante exato que delineei seus contornos sobre aquela ponte. Ao redor, vi o beija-flor no ar, imobilizado, para vê-la cruzar para o outro lado do rio. Então, lambi o cheiro do mar distante ao imaginá-la nua na areia de nossa praia secreta. Quando me atrevi a andar e correr e buscar seus lábios e me afundar nos seus braços, tive que gritar para pode lhe conter beijar prender atar, na fração de meu pensamento.
" Sem mais verbos! Cem mil versos não vão me fazer parar! Quero invadir, possuir seu universo e naufragar na imensidão de seu olhar! "
Em meio a turba que invariavelmente cruza esse caminho, minhas palavras flanaram e pousaram na água podre desse rio morto, sem que seus ouvidos, atordoados por meu ego e distantes de meu eco, distinguissem qualquer som. Quando me dei conta de tudo e do nada, em meu sorrateiro instante de possessão, quis buscar seus gestos de amor a tão poucos passos da perdição.
" Como posso saciar meus braços e entregar meus olhos para te fazer pisar e me cegar de amor? "
Ainda dobrava a esquina quando entendi que já era tarde para nunca mais ser o que nunca fui e cedo demais para desistir de lhe esperar de novo noutro lugar. São Paulo é assim: muita solidão vivendo junto, muito amor disperso em vozes, em olhares que nunca mais cruzarão, em corpos que se tocam em tocas profundas, em trens velozes, para nunca mais convergirem no tempo e no espaço.
Espaço... seu espaço poderá ser preenchido por amor fugaz. Mas o tempo, ah o tempo... esse permitirá as saudades do que não vivemos. Eu e você, seguindo a vida, ignorantes de nossos amores, saudosos de um futuro que já passou, em muitas camas, em muitos braços que não nos pertencerão.
Aí, numa noite fria de garoa fina, cruzaremos apressados pela Paulista e teremos a vaga lembrança de um instante preso no tempo. Baixaremos nossos olhares, suspiraremos profundamente e voltaremos para nossas casas, para levar nosso cotidiano de amor prático, vazio de essência e carente de uma loucura qualquer numa ponte qualquer de uma cidade qualquer, sem mais versos, sem mil versos para nos fazer voltar.

12 comentários:

Moita disse...

Silvio

Texto sensacional, fez bem em reeditá-lo. Só um grande poeta como voce pra fracionar a destilaçao de tanto sentimento.

parabéns.

Caiê disse...

Essa é uma das razões por que abomino as grandes cidades. A multidão arrasta-nos, e nada faz parar essa vida a contra-relógio. Chego a pensar que a vida nem existe.

Anônimo disse...

"São Paulo é assim: muita solidão vivendo junto, muito amor disperso em vozes, em olhares que nunca mais cruzarão, em corpos que se tocam em tocas profundas, em trens velozes, para nunca mais convergirem no tempo e no espaço."

"Eu e você, seguindo a vida, ignorantes de nossos amores, saudosos de um futuro que já passou, em muitas camas, em muitos braços que não nos pertencerão."

Ah, Paulista, ah caminhos, ah espa'cos! Ah, texto maravilhoso de encher os olhos...

Abra'cao!

RF

Anônimo disse...

Fez realmente muito bem em trazer de volta esse texto lindo!! Ah, a cidade... Odeio amá-la.

Roy Frenkiel disse...

Nao entendi muito bem a coincidencia, mas pra essas coisas de coincidencias eu sou lerdo mesmo :P Como digo la, eu tb ja ouvi o rio passar, mas qual dos posts coincide com esse? Virtualidade? hehe

Abrax!

RF

Angela Ursa disse...

Silvio, o ritmo acelerado é uma marca do paulistano mesmo. Beijos!

Anônimo disse...

Verdade! Nao tinha me dado conta
:-)

Abrax!

RF

Anônimo disse...

Gostei de estar aqui nesse teu rio verbal...
Abraço

Anônimo disse...

Muito bonito mesmo se nao conheço Sao Paulo.
Abraço.

Mauro Pereira da Silva disse...

Silvio, obrigado pela visita em meu site. Infelizmente os brasileiros tem uma tendência masoquista de só mostrar a miséria. Existem problemas em todos os países do mundo, mas os cidadãos tem um senso de decÇencia muito grande, o que não é nosso caso. Parece que gostamos de só mostrar o horror, o grotesco, a baixaria, e o lixo. Realmente não conheço RS, só cheguei até Florianapolis, mas pretendo um dia conhecer. Abraço cordial.

Anônimo disse...

Caro Silvio:

Muito bem , São Paulo é com certeza a cidade mais amada e odiado do planeta, no meu caso moro do lado e vez ou outra trabalho por lá...amo a cidade, mas as vezes ela me esgota..

Abçs

Marcos
www.gotasdefel.blig.ig.com.br

Anônimo disse...

Oi, Sílvio, Voltei depois de 2 meses de muita doideira. Estive pouquíssimo por aqui, por falta absoluta de tempo. Foi um caos a minha vida, nem calcula.
Qto a SP, mal conheço. Só estive lá por 2x e a trabalho. Fiquei confusa e perdida com o rítmo, esse encontro desencontrado de pessoas lotando as ruas, esses olhares que não olham quem está à frente. Gosto de cidade grande, mas preciso ver montanhas, passar na beira do mar, olhar o horizonte onde a água se encontra com o céu. Um momento de paz, sentando num quiosque pra beber uma água de côco é fundamental para mim. Talvez por isso eu jamais consiga me imaginar morando em Sampa. Mas vc é como Caetano: consegue fazer poesia até com a garoa. Muito lindo o que escreveu.