Esse post foi publicado originalmente em setembro de 2005.
Lisa R B é contraditória desde o seu nome, porém ela resiste bravamente a massiva pressão política e à arrogância econômica que teima em transformar entreterimento em cultura.
Neste país, o poder econômico orienta a divulgação da cultura a seu bel-prazer, como se fosse um instrumento de dominação antes de ser uma manifestação do povo.
Tendo crescido numa ditadura e descoberto a liberdade de expressão já adulto é como se o normal fosse invertido. Isso fica intrínseco na forma como conheci Lisa R Bodarut Luca.
Conheci Lisa, em 1970. Era linda e tímida. Tinha um pai muito repressor que não a deixava andar com amigos e muito menos fazer o que ela mais gostava: representar. Naquele tempo, seu pai austero, vivia como novo rico e a cada dia sonhava em tornar-se um “cidadão de primeiro mundo”, como ele mesmo afirmava. Contrariando tudo o que seu ele desejava, Lisa buscava sua própria identidade. O cinema novo era sua fascinação, mas o que o pai queria era que ela participasse do Festival da Canção e tornar-se uma diva nacional. De certa forma ele reconhecia seu potencial, mas a seu modo de ver as coisas.
Foi nessa época que ela fugiu de casa. Melhor dizendo, foi banida, tal era a divergência que tinham. Ela, no teatro de arena, ele na Arena. A princípio conviveram com suas desconfianças, porém um dia seu pai mandou a polícia invadir o teatro em que ela atuava. Ela, que Esperava Godot, não contava com a dissimulação paterna, que dizia aos vizinhos que ela era uma hippie desordeira e que a mandaria estudar em Paris. Os vizinhos acreditavam piamente na versão dele, e lá se foi ela chorando viver distante de tudo o que sonhava.
Quando ela voltou para o Brasil, descobriu que seus amigos estavam engajados na sobrevivência, súditos de todos os sonhos que seu pai poderia ter: trabalhavam como atores em novelas em rede nacional, onde mimetizavam um país de luxo, onde os ricos eram gentis e românticos e os pobres divertidos e servis.
Ela deixou seu talento de lado e foi trabalhar numa fábrica, onde poderia organizar espetáculos de outro padrão: comícios sindicais. Seu pai, embora já mais velho e menos sonhador, ainda fazia o possível para deixá-la incógnita. De operária rebelde, passou a ser líder sindical e foi para rua pedir que seu pai permitisse que ela pudesse gritar, gesticular e aglutinar-se pelas ruas. Ele, acostumado que era com seus devaneios artísticos, concedeu-lhe permissão e ela não tardou em pedir eleições diretas já. Ela acreditou que seria possível e reuniu centenas de milhares de pessoas nas ruas.
Quando tudo parecia que os anos em que seu pai a mantinha refém de seus ideais estariam chegando ao fim, tudo ficou igual: seu pai escolheu novamente quem iria ficar à frente de seu espetáculo. Ela voltou ao sindicato e falou para seus amigos que era hora de mudar, de mostrar ao seu pai que era possível fazer diferente e escolheu um colega para colocar a frente na luta. Porém seu pai era astuto e contratou um ator de TV para enfrentá-lo nas ruas.
O povo acreditou que o lindo era mais fino, mais de acordo com a novela das oito e que teriam um galã a frente do país. Lisa, com seu colega barbudo, cabeludo, sem um dedo que havia perdido em sua inabilidade no trato com a máquina e que ainda falava o português das ruas, pareceu uma idiota. Como Lisa poderia aliar-se a um sapo, enquanto o príncipe sorria vitória em horário nobre?
Lisa, que na época ostentava uma bandeira vistosa e vermelha, enrolou-a e voltou ao teatro e começou a fazer uns bicos no circo perto de sua casa, para poder manter-se. Seu pai ria feliz em ver sua filha finalmente dobrando-se a seus pés.
Passou pouco tempo até que o canastrão mostrou a que veio. Apesar de ter sido tão bem instruído pelo pai de Lisa, resolveu fazer-se de dono de tudo e agir por conta e risco de seu ego. Lisa, atônita, não entendeu o que acontecia, quando estudantes de todo país foram às ruas para derrubar aquele artista engomado, sem darem-se conta que estavam fazendo justamente o que o pai de Lisa queria, ou seja, recuperar o terreno perdido.
Em 1994, encontrei Lisa novamente num comício, com seus sonhos em bandeiras estreladas. Ela, que agora trabalhava também em novela, jurava que não fazia parte do circo eletrônico. Ela quis maquiar seu sapo barbudo e coloca-lo novamente no topo de sua esperança, no entanto aconteceu o que ela não contava. Seu professor de faculdade quis ensinar a todos, um caminho intermediário, que prometia mudar tudo sem mudar nada. E todos acreditaram nele, pois era inteligente, falava várias línguas e conhecia tudo. Só não sabiam dos amigos que ele tinha e que o deixaram chegar lá.
Assim foram passando os anos e Lisa foi se acostumando com a idéia de sua vida de artista estava fadada à periferia, ao secundário, a tudo que fosse alternativo ao modus pensanti. Ela foi trabalhar em favelas e povoados distantes, procurando resgatar uma cultura ultrajada pela televisão que massificava tudo, de acordo com o padrão que seu pai ditava.
Em 2002, tocou seu telefone. Ela fora novamente convidada a visitar seu velho amigo e teve mais uma surpresa entre tantas que já tivera. Seu amigo estava engomado, falava diferente, prometia tudo e se vestia como um galã de televisão. Ela que o conhecia tanto, não desconfiou de seus novos amigos que lhe rodeavam e que lhe enchiam de meios de ação e corrigiam todos seus gestos. Como num passe de mágica, ele estava na televisão, na mídia e com postura nas frentes da câmera como se tivesse feito anos de técnicas televisivas. Seu sapo tinha virado príncipe. Até seu pai estava ao seu lado quando o encontrou de novo.
Lisa confiou, ergueu a bandeira e foi às ruas saudá-lo. Uma massa humana o ergueu e ele foi conduzido ao palco, com toda parafernália possível, sem que lhe faltasse recursos. Seus companheiros pareciam agora os antigos senhores, que freqüentavam a sua casa na infância, quando seu pai lhes oferecia grandes banquetes.
Hoje Lisa R. Bodarut Luca acordou de manhã e viu que novamente havia sonhado demais. Voltou ao seu teatro mambembe, com uma garrafa de cachaça embaixo do braço e chorou amargurada em ver que seu pai novamente lhe negava o direito de mostrar-se completa, de exibir-se verdadeira a todos, sem ter vergonha de ser brasileira. Já não sabe mais se tudo que sonhou era delírio artístico ou se algum dia seus amigos que agora cercam seu pai estão representando ou se tomaram gosto pelo poder.
12 comentários:
Belle littérature ! J'ai adoré l'illustration ! Ils passent des 3 heures.Je suis fatigué.Beaucoup travail :
réunions, recherches, Blog de la Saint...
(não vale responder em inglês...rs)
Se é que entendi, este blog também é do poeta? Muito bom este texto, ainda não li os demais. Parabéns.
Maria Oliveira
Ahhh Silvio! Novamente, mais a se pensar.
"Neste país, o poder econômico orienta a divulgação da cultura a seu bel-prazer, como se fosse um instrumento de dominação antes de ser uma manifestação do povo."
... E em muitos outros, desafortunadamente.
Eu so ainda nao cheguei a um consenso intimo de sapo que virou principe ou principe que virou sapo, eu realmente nao sei. Pessoalmente, meus votos, por enquanto, sao nulos.
Abrax!
Amigo
Quero vê-lo na Academia Brasileira de Letras.
O seu estilo Alencarino, porém próprio, irá guindá-lo a uma daquelas cadeiras.
Meus sinceros parabéns.
PS. Lisa e muitos daquela época, foram obrigados a ficarem tontos mesmo.
abraços
Nota 10, Sílvio! Estou me sentindo a Lisa: temos muita coisa em comum. Sua nálise tão perfeita retrata uma realidade que faz chorar. Meu príncipe não parecia um sapo e eu tinha uma espécie de idolatria por ele. Hoje, destruída em meus sonhos, sinto-me traída e o percebo um batráquio. Só que, agora, encastelado e distante de tudo que o tornava especial. A vida é um grande teatro... que droga. Beijos, meu querido.
Nota 10, Sílvio! Estou me sentindo a Lisa: temos muita coisa em comum. Sua nálise tão perfeita retrata uma realidade que faz chorar. Meu príncipe não parecia um sapo e eu tinha uma espécie de idolatria por ele. Hoje, destruída em meus sonhos, sinto-me traída e o percebo um batráquio. Só que, agora, encastelado e distante de tudo que o tornava especial. A vida é um grande teatro... que droga. Beijos, meu querido.
Nota 10, Sílvio! Estou me sentindo a Lisa: temos muita coisa em comum. Sua nálise tão perfeita retrata uma realidade que faz chorar. Meu príncipe não parecia um sapo e eu tinha uma espécie de idolatria por ele. Hoje, destruída em meus sonhos, sinto-me traída e o percebo um batráquio. Só que, agora, encastelado e distante de tudo que o tornava especial. A vida é um grande teatro... que droga. Beijos, meu querido.
"valeu".
e facto deste post ter sido pela primeira vez publicado em setembro de 2005 e voltar sê-lo agora, diz muito.
a minha realidade não é brasileira, mas creio que também há muitas "lisas" por aqui.
é pena.
às muitas lisas que nos passam ao lado falta a coragem de ir até ao fim. de não optarem por baixarem os braços, de acharem que há sempre alguém que pode fazer melhor que elas.
"pai de lisa" usava os outros e a "lisa" acabou por fazer o mesmo, pensando que assim conseguiria ganhar.
foi um erro.
era ela que deveria ter confrontado, directamente, o pai.
talvez assim o seu sonho não se tivesse tranformado numa "...garrafa de cachaça...".
gostei.
Hola, desde el Caribe, Zenia en:
http://imaginados.blogia.com
Bello tu blog. ¡Què imágenes tan hermosas¡. Me encanta Brasil.
Meu Caro Silvio, apareci para ler e aplaudir o pungente texto em que narra o resgate da aspiração de uma jovem nos anos de arbritariedade, de obscurantismo e no exercio da forma autoritária e retrógrada da figura paterna, melhor ainda, quando inserido no partido de sustentação do regime.Um bom fragmento para se compreender esta fase.Querido, um grande abraço.
Aguardando o novo e sempre sensacional conto.
abs
Silvio, esse texto me tocou muito porque compartilhei dessa época, desses ideais e também vi o sapo sofrer a metamorfose. Beijos da Ursa
Postar um comentário