03 fevereiro 2006

Relato Marginal

Trago hoje aos meus leitores um de meus textos favoritos. Faço isso, porque foi publicado nos primórdios desse blog, lá no longínquo mês de setembro de 2005. Alguns leitores, que já frequentavam esse blog já o conhecem e poderão relê-lo, outros terão a oportunidade de conhecer um depoimento que ocorre repetidamente nos bolsões de miséria que inflam as metrópoles de todo mundo, principalmente no terceiro mundo. Com vocês, Marineide...

Meu nome é Marineide. Não sei porque Marineide, mas esse é meu nome. As coisas que eu me lembro de minha infância parecem que são como umas manchas numa roupa branca. Umas manchas de sangue bem escuras, parece que foi assim que as coisas aconteceram na minha vida. A minha mãe fumava muito e às vezes bebia, não quero falar dela. Meu pai... tive muitos. Uns gostavam de mim e outros gostaram mais que eu queria que gostassem. Eu cresci num lugar muito pequeno, com paredes de caixas de papelão. De noite era escuro quando tinha pouca lenha para o fogo. Passava um rio com cheiro bem forte dentro de nossa casa e minha mãe me deixava ali prá ir buscar umas coisas que ela ganhava na rua. Eu tive alguns irmãos que brincavam comigo. Um morreu depois que nasceu porque minha mãe esqueceu dele na caixa prá fumar aquela pedra e os ratos morderam ele tanto que não adiantou levar no hospital. Ele se juntou com os outros que já tinham morrido. Meus irmãos morriam muito fácil. Tinha outros que não morreram e cuidavam de mim quando minha mãe ia buscar coisas prá gente comer. Ela ganhava na rua. Às vezes era comida que já estava estragada, mas tem gente que dá o que não presta prá eles e acham que serve prá gente. Tive doente da barriga muitas vezes por causa disso. Minha irmã mais velha dizia que eu era fraca, mas acho que não, porque eu não morri. Ela foi embora bem cedo com outros meninos que moravam ali perto. Ela estava ficando bonita, depois que começou a botar corpo. Achou um jeito de sair dali, enquanto minha mãe estava dormindo com um pai que eu tive. Minha mãe me deu muitos pais, mas eu não quero falar dela. Quando eu podia ir com ela prá rua era bom. As pessoas ficavam olhando prá mim e davam dinheiro prá ela. Ela comprava cigarro e cachaça. Quando eu ganhava comida a gente repartia, senão a mãe ficava muito brava e brigava com todo mundo, até comigo. A barriga ficava doendo quando eu não ganhava nada. Um dia minha mãe me deu uma pedra e me ensinou a não ter mais fome. Acho que ela quis me ajudar. Marineide, não sei porque me chamavam assim. Meus irmãos que não morreram tinham nomes mais bonitos que o meu. A Rosalva e o Robinson eram os que tinham os nomes mais bonitos. A Rosalva foi embora, eu já falei nela antes. O Robinson ajudava a mãe na rua e cuidava da gente às vezes. O Edmilson foi embora num carro da Febem. Ele voltava e ia de novo, até que não voltou mais. De noite fazia muito frio quando entrava vento pelas frestas das caixas de papelão que a gente recolhia na rua e reforçava a parede até a próxima chuva. Um dia tinha gelo na rua e ficou tão frio que eu chorei muito porque minhas orelhas doíam, minhas mãos doíam e meus pés doíam. A Rosalva me apertou no corpo dela e aí melhorou um pouco. A Rosalva foi umas vezes numa escola que tinha lá perto e depois me ensinou umas palavras. Eu fui juntando os pedaços e conseguia ler umas coisas. Depois a Rosalva foi embora e eu não consegui aprender mais alguns pedaços de palavras que ela não chegou a me ensinar. O frio voltou e meu corpo doeu bem mais sem a Rosalva. Quando eu tive um pai que era bem forte eu já era bem grandinha. No inverno ele dizia que ia me esquentar e me apertava muito. Eu não gostava quando a minha mãe bebia, porque ele aproveitava prá me apertar mais. Eu tinha nojo dele porque ele fazia umas coisas que eu não queria. Quando fiquei mais velha eu entendi que aquilo não se fazia com criança. Eu era uma criança e ele achava que eu era uma mulher. Acho que ele fez isso com a Rosalva também, mas ela foi embora e nunca me contou porquê. Nunca mais eu via Rosalva. Ela era boa prá mim. O Jonatan nasceu depois de mim e depois que aquele outro bebê morreu por causa dos ratos. Eu cuidei dele bem direitinho porque não queria que ele morresse. Eu precisava ter alguém prá cuidar e prá me esquentar no inverno e que não fizesse nada de errado comigo. O Jonatan era bem querido e quando ele tinha fome eu dividia tudo com ele. Eu sempre provava antes prá ver se não era comida estragada que a minha mãe tinha ganhado na rua. Ele também gostava de mim e a gente cuidava um do outro. Quando eu fui embora da ponte deixei a minha mãe bêbada com o outro marido que ela arrumou depois daquele que me abusou e levei o Jonatan comigo. No começo a gente sempre procurava as pontes prá dormir, mas elas estavam sempre ocupadas, daí a gente dormia na calçada mesmo. Tem muita gente que dá comida na rua e uns trocados. Assim, agente não precisa ir para os abrigos da prefeitura. Quando o Robinson morava com a gente ele me disse que esses abrigos eram prá engordar a gente e depois tirar foto com umas grã-finas. Elas compravam comida com essas fotos e depois saíam no jornal para seus maridos conseguirem votos nas eleições. Não sei se era verdade, mas eu não queria que o Jonatan e eu servíssemos prá elas tirarem fotos e também não sabia o que era direito esses votos. Elas têm um cheiro esquisito de flor estragada. O Jonatan às vezes chorava e queria voltar prá mãe, mas eu sabia que lá não era bom e o abraçava até ele dormir. A gente conseguiu um lugar prá dormir perto de um viaduto. Tinha um buraco no viaduto e a gente entrava lá no escuro e ficava quieto prá não acordar os outros que dormiam lá. Quando eu menstruei na primeira vez eu não sabia o que estava acontecendo comigo e chorei muito, mas aí apareceu uma mulher de dentro do viaduto que me explicou que agora eu tinha que cuidar prá não pegar cria. Eu não gostava de ficar transando prá ganhar dinheiro, mas quando eu estava com muita fome e o Jonatan queria leite eu ia prá rua. Tinha sempre uns homens que apareciam de carro e queriam que eu fizesse umas coisas prá eles. Agora que eu menstruei a mulher me disse que eu tinha que cuidar prá não pegar cria. Eu não queria pegar cria, porque eu já tinha o Jonatan que era cria de minha mãe e que eu tinha que cuidar. Não fiz mais nada que pudesse pegar cria, só fazia o resto. Ganhava menos dinheiro, mas como eu não gostava de pedra e o Jonatan também não, era só a gente pedir mais tempo na rua que as pessoas davam umas coisas. Quando Jonatan ficou maiorzinho eu expliquei prá ele não pegar pedra e ele entendeu. A gente se cuidava um do outro e com isso ficava mais fácil. Quando era frio a gente se esquentava e quando um estava doente o outro pedia ajuda para as pessoas da rua. Depois de um tempo eu conheci o Edilberto. Ele morava num outro viaduto que era maior e me levou prá lá e deixou eu levar o Jonatan. Ele no começo era bom prá mim e dividia as coisas, mas depois ele começou a beber e me batia. Todos os meus pais batiam na minha mãe e eu não me importei muito que ele me batesse porque eu achava que assim era quando a gente tinha um homem. O Jonatan não gostava dele e um dia eles brigaram e o Jonatan deu uma facada nele. Deixamos ele sangrando naquele lugar e tivemos que ir prá bem longe dali. A gente caminhou muito naquela noite e a polícia nos atacou. Eu quis fugir, mas o Jonatan estava com a roupa suja de sangue e tivemos que dar os vinte reais que a gente tinha para o policial deixar a gente ir embora. Ainda bem que eu guardei o dinheiro para o Edilberto não tirar tudo de mim. Eu sabia que um dia a gente teria que ir embora, mas eu não sabia que teria que ser assim. A gente então foi morar noutra cidade que era ali perto e que não tinha nenhum rio, daí a gente não achou ponte e teve que morar dentro de um cemitério, numa casinha que tinha lá. A minha barriga cresceu e eu vi que ia ter um bebê. No cemitério a gente tinha que entrar de noite porque de dia tinha gente cuidando. A barriga crescia e o Jonatan me ajudava buscando comida porque eu ficava muito fraca. Quando o bebê nasceu eu estava dentro daquela casinha e doeu muito. O bebê era fraquinho, mas a gente conseguiu salvar ele e ele se chamou José. Escolhi esse nome porque já estava escrito na casinha que agora era a casinha dele também. Lá dentro da casinha tinha um caixão bem velho e ninguém ia lá limpar. Então eu limpei e ganhei a minha primeira casa, que durou até quando o guarda do cemitério escutou o José chorar. A gente saiu de lá e foi procurar outro lugar, mas demorou prá achar e então a gente dormiu na rua. Ainda bem que era verão e não passamos frio, mas tinha mosquito e o José ficou todo marcado, mesmo que eu ficasse espantando a noite toda. Ele quis mamar no meu peito e eu deixei. Tinha bastante leite no meu peito e eu não sabia que eu tinha, se não já tinha dado para o Jonatan quando ele era menor. O Jonatan cresceu muito rápido e sempre ficava perto de mim, até que um dia ele já estava maior ele achou que uns caras lá da rua eram bons e foi ajudar eles a roubar para comer. Eu disse para ele não ir, mas ele me disse que ia melhorar de vida e vinha me buscar. Até agora ele não voltou, mas o José me esquenta bem no inverno e a gente vive na rua. Outro dia conheci o Duda Dedão e ele gostou de mim e não se importou que eu já tinha o José. Ele não mora na rua e nem em buraco. Ele tem um barraco muito bom e me levou prá lá. A mulher dele não se importou e a gente ficou vivendo lá. Quando ele queria que eu e a mulher conseguíssemos dinheiro a gente ia prá rua e conseguia uns caras de carro, mas eu não deixava eles fazerem filho em mim porque eu já tinha o José que me esquentava à noite quando o Duda Dedão dormia com a mulher dele ou quando ele saía e bebia. Um dia o Duda Dedão bateu tanto na mulher dele que ela foi embora. Eu podia ter uma casa prá mim, mas eu vi que ele um dia ia me bater também e peguei o José e fui embora. Quis voltar para o cemitério, mas tinha gente morando lá e então achei melhor dormir na rua. Tinha um parque perto e lá eu levava o José para brincar. Um dia que era frio apareceu na rua um carro grande e desceu muita gente e ofereceu sopa quente. Pareciam que eram anjos e aquela noite dormimos de barriga cheia e corpo quente. Eles convidaram prá ir embora com eles, mas eu tinha medo do que eu não conhecia e fugi daquela rua. Então me lembrei do Robinson, da Rosalva, do Edmilson, do Jonatan e olhei para o José. Pensei que ele ir acabar como eles e voltei para aquela rua. No outro dia o carro dos anjos não voltou e eu fiquei com fome de novo. Quando era de manhã começou a chover e tive que ir para outro lugar onde não chovesse porque o José começou a tossir muito e do nariz dele não parava de sair a gripe. Consegui um pouco de dinheiro e fui na farmácia e eles me deram um xarope. Dei tudo prá ele e ele chorou de dor de barriga. De noite os anjos voltaram e aceitei ir com eles. Por isso que agora eu estou contando tudo isso prá vocês. Não sei se vai ser diferente, mas queria que agora fosse. Não quero que o José se perca de mim. Preciso de alguém que me esquente no inverno e que não me faça nada que eu não queira fazer.

10 comentários:

Anônimo disse...

Já li algumas produções tuas e, certamente, muitas outras ainda virão, mas ESTE!.. ah este tem um toque muito especial.. talvez por falar à "mãe" que habita em mim, tlvez por trazer lembranças tristes do passado.. Não sei ao certo.. mas torço para que sempre tenhas novas linhas (ou velhos sentimentos) à nossa espera.
É mágico encontrar textos.. poemas.. letras soltas.. que de alguma maneira tocam fundo em recantos adormecidos, principalmente com este estilo despretencioso e sutil.
A descoberta de um sentimento íntimo, expresso por mãos alheias acaba amparando a alma de quem está "só".
Sílvio, continue!... Siga em frente.. Seja sempre esta estrela brilhante de vida própria e luz genuína!
Com carinho S.

Anônimo disse...

Caro Silvio ,

Primeiramente gostaria de agradecer pelos seus comentários no texto que eu mandei lá no blog da Santa, a troca de opiniões é sempre importante, agora falar o que do seu texto, fiquei emocionado, é muito triste, real, tocante e tem muita qualidade também....parabéns

Marcos
www.gotasdefel.blig.ig.com.br

Caiê disse...

Sílvio:
não sou de lágrima fácil. Porém, com este texto, chorei.
Devias publicá-lo; é um vivo retrato de tantas Marineides... Como somos cegos a elas!

Anônimo disse...

Querido Sílvio,
Primeiro, obrigadíssima pelo comentário no meu "O Gato". É muito gostosa essa troca de experiência, de olhares sobre a prosa da vida e da ficção.Só em se saber que se está sendo lido e avaliado já é uma recompensa enorme, né não?
Quanto ao seu texto: é impressionante, não só pelo conteúdo como pela forma: corrida (gostei muito disso), coloquial, verdadeira. Dá para se ver a situação toda, para se sentir a desesperança dos abandonados. Há uma aceitação do trágico, uma calma, na sua Marineide, que me fez mal.
Belíssimo texto. De verdade. Vc já tentou publicá-lo? Sei, por experiência própria, que é mto difícil. Mas creio que vc deve tentar MUITO, insistir, não desistir. E, pelo menos, postar aqui, postar sem parar. Uma hora algum editor vai ler, não é possível que não!
Um beijo grande.

Anônimo disse...

Oi, Silvio... voltei... rss
Mas é para responder às questões que vc levantou em seu comentário:
sim, existem pessoas que adentram nossas vidas e se tornam enfeites que usamos qdo e como queremos... rss. Faço isso qdo resolvo liberar meu lado cínico que se baliza no feminismo de quem sabe que outras mulheres, na história social, foram usadas dessa maneira, como objetos.(caramba, vc nunca mais vai aparecer com seus comentários!)...
Mas, tb, como apaixonada pela psicologia Junguiana, uso os mitos e arquétipos do inconsciente coletivo, em meus contos. Uma viagem pelo fantástico, pelo surreal, me é agradável. E invento situações onde erotismo e mitologia se mesclam, às vezes de uma forma bastante irreverente, já que sexo e religião são incompatíveis numa sociedade puritana e teísta. Enfim, meu amigo, essas histórias saem, aos borbotões, de minha mente insana... rss. E, o que é pior, existem fragmentos de realidade nessa bagunça toda. :-)

Jean Scharlau disse...

Forte como os fatos! Dar-te os parabéns chega a parecer uma inconguência e um desrespeito para com a retratada personagem. Limito a dar-nos os pêsames por realidades como esta.

Anônimo disse...

faço minhas as palavras do jean!! forte!

Débora Linden Hübner disse...

Uma das mais "belas" críticas sociais que já li.

Retratar a tristeza com beleza é uma arte.
Parabéns, Sílvio...

Grande abraço!

Serjão disse...

Silvio: Agradeço e inclusão e farei o mesmo com vc lá em casa. Pode estar certo que virei aqui muitas vezes trocar idéias. Abraços

Saramar disse...

Silvio, que coisa, me fez chorar!
Não você, claro, mas essa dor enfiada garganta a dentro de alguém que sequer sabe que é dor.
Estou envergonhada, mais ainda do que já sou. Porque me sinto impotente, tanto, tanto. E sempre me ensinaram que só os fracos sã impotentes diante da injustiça.
Não quero falar mais.

Beijos