23 junho 2007

In-versa-mente


De frente ao penhasco ela mira o sol que se apaga no mar. É a última pedra que a detém, um passo antes do fim. Volta-se para trás e neste ponto o escritor nota a personagem a observá-lo. Seus olhos vermelhos, chorosos, fundos e amargos, dirigem-se diretamente a ele. Por um instante o criador contempla a criatura e sua aflição. Ele não sabe mais quem determinará o passo seguinte: ela a olhá-lo, condena-lhe pelo passado que a deu. Ele tenta disfarçar perante a tela a imagem que lhe chama os olhos. Ele vê o passo que segue, mas não ousa escrevê-lo. Desvia os olhos dali e sente a culpa de um deus perante a alma perdida. Ela recua da pedra e vem em sua direção. Já não é mais ele que governa a cena. Ela se aproxima e por instantes fica desfocada, como se já não pertencesse à cena. Ele tenta parar sua digitação, mas ela o impulsiona a dedilhar cabisbaixo, de olhos presos às letras brancas em teclas negras a sua frente. Ela, ainda lacrimosa, abre um sorriso instigante e balbucia as duas palavras que apesar de separadas dizem tudo: “por quê?”. Ele sabe que ela está ali e mantêm-se de cabeça baixa. Já não é mais ele quem dirige o roteiro. A presença dela que lhe impulsiona. Por instantes quer matá-la, atirá-la no penhasco; seria capaz de inverter o pôr de sol e fazê-lo novamente subir, afinal era ele que escrevia e poderia fazer como bem quisesse. Mas, não. Agora era ela que jogava seus olhos sobre cada movimento que ele fazia. Não andaria de volta ao penhasco, não saltaria, não morreria. Entraria por entre as pontas dos dedos e se incorporaria no seu criador.
Agora ela está diante do teclado e olha adiante o penhasco vazio. Vê que o sol parou e o substitui por uma lua prateada que encrespa o mar. Pede a brisa de lá para balançar seus cabelos, que antes o escritor não foi capaz de descrever. Seus cachos dourados balançavam do vento que soprava da tela. No penhasco vazio surge um homem assustado que se vira pra trás e pede em súplica um leve impulso para jogá-lo ao mar que ela acaba de transformar numa nuvem suave que o ampara durante sua queda. Quando ele já não entende mais a singela paisagem trocada por ela, passa afundar nos flocos de algodão e morre devagar, sem saber onde está.

4 comentários:

Moita disse...

Simplesmente GENIAL!!!

Cara! Não vou lhe dizer mais nada.

1 abraço fraterno e de admiração.

Santa disse...

Nossa!! Quanto tempo não visita o Contos e Encontros! Preciso passar uma tarde dedicada...Ultimamente, ando pra lá de Marrakech.

Bjs

Mónica disse...

¡Qué foto espectacular!
Saludos. Nos estamos viendo. Bss
mónica

Carrla Borges disse...

Sílvio, querido,
Você é genial.
Carla Borges