19 abril 2007

Bom dia, meu velho!


[Post original em 24/02/2006]
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Quando acordou de manhã, havia uma velha deitada ao seu lado na cama. Ela emitia sons estranhos e seus traços lembravam sua sogra. Não, não poderia ter bebido tanto na noite anterior para ter acabado nos braços de sua sogra!
Levantou-se com dificuldade, como se seu corpo pesasse toneladas, procurou seu chinelo ao lado da cama e encontrou umas pantufas surradas que lhe aqueceram os pés.
Devagar e apoiando-se nos móveis chegou até o banheiro, onde molhou seu rosto, esfregou seus olhos e mirou assustado o espelho. Susto! Havia envelhecido quarenta anos: sua barba por fazer era branca numa pele flácida que lembrava seu avô; tufos de cabelos grisalhos saíam de suas narinas e ouvidos como se tivesse engolido um gato; suas mãos, agora as via melhor, tinham marcas marrons e avermelhadas, sobre uma pele murcha que deixava seus tendões sobressaírem-se feito cordas grosseiras de um velho violão; abriu seu roupão perante o espelho e quase caiu para trás. Estava aprisionado dentro de um velho corpo, com longos pêlos brancos pelo peito e pela barriga feita de peles caídas sobre seu sexo, que nem mais poderia ser chamado assim. Suas bolas pareciam estarem tão pesadas que afundavam no vazio que era seu entre-pernas.
Voltou para o quarto e olhou aquela que parecia ser sua sogra, que nesse momento apanhava seus óculos no criado mudo e dizia:
- Adalto, meu velho, por que levantaste tão cedo?
Ele reforçou a suspeita que fosse sua sogra e sem jeito tratou de sair do quarto.
A casa era a mesma, mas possuía também rachaduras que lembravam rugas pelos cantos. Andou até o quarto dos meninos e o encontrou igual, com as mesmas flâmulas pelas paredes, um pôster do Che Guevara e uma faixa com uma canção do Ataualpa Yupanque “Yo tengo tantos hermanos...”. Parecia tudo normal, até demais... como se tivesse sido abandonado há décadas, porém mantido feito mausoléu. A mobília empoeirada parecia ter sido esquecida, para alegria das teias de aranhas que se multiplicavam nas alturas. Em frente ao quarto, seguindo pelo corredor, o tapete de tão pisoteado, criara um trilho até a cozinha, onde agora ele se dirigia.
Chegando lá, a geladeira amarelada, o fogão, a mesa eram os mesmos com os mesmos traços amarrotados de seu corpo. As cadeiras estavam forradas, com um pano de estampa antiga, já puído.
Quis abrir a janela, porém havia novas trancas, como se quisessem aprisioná-lo naquele lugar. A porta estava chaveada, mas não teve dificuldade em sair ao quintal.
A grama crescida, sem flores e as paredes de três edifícios que cercaram seu quintal deixavam um ar lúgubre como se fosse o fundo de um cemitério de um filme antigo de Bela Lugosi.
Procurou seu cão, assobiou, chamou pelo Rex e nada. Olhou para trás e lá estava aquela mulher:
- Adalto, você chamou pelo Rex? Ele morreu há trinta anos meu velho.
Aquela intimidade lhe permitiu encontrar dentro daquele corpo mirrado da sogra, sua mulher atropelada pelo tempo.
Não havia dúvida. O tempo passara sem que ele tivesse se dado conta.

19 comentários:

Moita disse...

Silvio

Perfeito. Espetacular. É assim mesmo que acontece e voce deu cores ao tempo.
grande abraço.

Anônimo disse...

Caro Silvio:

Bele, estranho, assustador e reflexivo...perfect...parabéns de novo..

Abçs


Marcos
www.gotasdefel.blig.ig.com.br

Saramar disse...

Sílvio, meu poeta preferido porque consegue tingir de beleza até essa tragédia que é passar pela vida sem vê-la.

Beijos
P.S. Obrigada pela beleza do comentário. Você é sempre perfeito.

Anônimo disse...

Coincidentemente tratamos do mesmo tema, na mesma data: o tempo - que, inexorável e implacável, passa por nós sem que, às vezes, o possamos sentir, causando uma espécie de lapso de memória. Ótimo texto, caro Silvio. Beijos

Lata Mágica Recife disse...

Silvio um forte abraço dos seus amigos da lata.

Anônimo disse...

Caro Silvio,

Se quiser me mandar a musica agradeço, só não sei se o Blig "deixa" postar músicas, se der galho depois eu peço tua ajuda, OK???

Abçs

Marcos
www.gotasdefel.blig.ig.com.br
gotasdefel@ig.com.br

Caiê disse...

Espero que este conto tenha continuação... Fez soar um sininho dentro de mim!
Parabéns pela escrita!

Ismael Alexandrino disse...

Nobre Sílvio,
cheguei até aqui por intermédio do blog da Giulia. bom gosto lá, bom gosto aqui!
Que texto bom, meu caro! A correria da vida nos impede de ver o tempo passar, mas luto incessantemente para curtir o hoje para quando o amanhã chegar eu possa ter boas histórias para contar,e não só rugas vazias de sentido para apreciar.
Voltarei mais vezes para viajar nos contos. Gostei muitíssimo daqui.
Um fraterno abraço.

Anônimo disse...

Gostei de seu texto lá na revista do lobo e chegando aqui encontro outro tão bom quanto. Parabéns.
Rodrigo Correa

Jean Scharlau disse...

Silvio, tá demais de bão este aqui. Consegui inclusive sentir um pouco de artrite e quase sai a procurar meus óculos (que na verdade não tenho).
Grande abraço.
Jean Scharlau.

Anônimo disse...

Silvio, pelos aquis e entrealis cheguei ao seu blog, e realmente, tenho mais e que calar a boca e assistir quem sabe fazer o que sabe ;-). Parabens!

RF

Santa disse...

Vou confessar o que nem as paredes confesso: difícil é ler o conto sem que provoque muitas lembranças...

Bjs

Anônimo disse...

Pois e, Silvio, mas eu sou donzela, prefiro um chianti ou ate um zinfandel :P. Linkar-te-ei a minha pagina! Abrax!

Moita disse...

Parece que o Homem caiu no frevo mesmo; não apareceu ainda....

Divirta-se. amigo

Angela Ursa disse...

Olá, Silvio! Texto forte e interessante esse. Literalmente, o personagem "parou no tempo" e foi engolido por ele, envelhecendo sem perceber. Beijo da Ursa

Kalinka disse...

Olá Amigo Sílvio

Vim «espreitar» seu jardim de palavras, cheio de cores vivas neste início de Primavera.

No kalinka, pode ver uma brincadeira que fiz, em forma de poesia para resumir o agradável jantar de Primavera que aconteceu na outra semana; seguidamente organizei uma festa de aniversário para o dia 19 de Abril, meu dia de nascimento e, neste momento estou recordando uma viagem que fiz na Páscoa de 2006. Todos temas muito variados e interessantes q.b.

Boa semana.
Beijos e abraços.

Moita disse...

"Parecia que tinha engulido um gato" legal!
Só tenho uma palavra pra esse conto. PERFEITO.

Parabéns

Abraços

Moita disse...

Estamos sentindo a sua ausência em novos posts.


Abraço

Lata Mágica Recife disse...

Concordamos com moita!!

Um abraço dos amigos da lata e um excelente fim de tarde.

Willam & Odilene