30 junho 2006

Atrás de seus olhos - João Pedro

Meu pai gosta de vir aqui comigo. Eu preferia jogar bola com ele, mas desde a separação meu pai anda meio triste, sozinho. Não gosta de cozinhar e assim pouco ficamos no seu novo apartamento. Ele não aceitou muito bem que a mamãe já tenha outro namorado. Já disse para ele que o cara até é legal, mas vi que ele não gostou muito e procuro não falar nisso. Aqui no shopping, quem sabe, a gente encontre uma namorada para ele? Acho que vou ter que dar umas dicas para meu pai.
Eu sou um menino, mas me sinto maior. Percebo que meu pai precisa mais de mim. Ele precisa ver que estou bem, ele precisa de namorada, ele precisa continuar a vida dele. Não vou deixar de gostar dele agora que minha mãe tem outro, mas se eu ajudar a encontrar uma nova namorada para ele vai ficar tudo mais fácil.
Logo eu estarei crescido como aqueles rapazes ali, vou ter meus amigos, sair com eles. E ele, vai fazer o quê? Eu que não vou sair por aí carregando meu pai, eu não! Também não quero que ele fique como aquele velho ali, com cara de brabo.
Aquela moça ali é a Nádia. Ela é muito simpática, até já me ajudou uma vez que meu pai virou o sorvete em mim e disse que fui eu. Deixei assim, não desmenti porque entendi que ele estava todo envergonhado. A Nádia é muito bonita, apesar de estar sempre de uniforme e lenço no cabelo, eu percebo nos olhos dela. Meu pai também acha, só não fala nada. Fico na minha, mostro outras mulheres para ele e ele nem dá bola. Acho que ele tem esperança que minha mãe o queira de volta. Coitado, ela não gosta mais dele há mais tempo que ele pensa. Eu já notava como as coisas iam antes mesmo deles se separarem. Será que ele não percebia?
Olha a mulher que vem ali. Nossa, ela é muito bonita mesmo! E grande! Todos parecem grandes ao meu redor... Meu pai parece que tem vergonha de olhar para ela. Ah, se fosse eu... Separado, morando sozinho e com um filho simpático como eu... Vou perguntar se ele quer que eu a chame... Não, deixa meu pai. Estou pressionando ele demais e isso pode deixá-lo triste.
Ali atrás têm duas velhinhas simpáticas, elas ficam acenando para mim como se eu fosse um bebê. Não vou olhar muito, não. Aquela que chegou por último parece ser bem divertida, mas antes eu vi que uma delas chorou. Será que ela está sentindo alguma dor? Será que velho sente dor ou se acostuma? Não sei porquê fico pensando isso. Queria era jogar bola.
Meu pai me deixou aqui e disse para não falar com estranhos. Esse senhor que está me convidando para tomar um sorvete não é estranho, já vi meu pai cumprimentá-lo. Não sei se devo ir com ele... Adoro sorvete!

26 junho 2006

Atrás de seus olhos - Diogo

Estar perto de Rodrigo me deixa sempre tranqüilo, apesar dele não saber o quanto me atrai. Aqui no shopping a gente conversa de tudo. Gosto de saber do que ele gosta, gosto de olhar o que ele olha, gosto de estar onde ele está. Bebendo um refrigerante, escolho o mesmo. Às vezes até compartilhamos a mesma lata, o que me deixa excitado em por meus lábios onde ele pôs os dele: “quer um gole, Diogo?”... se ele soubesse desse beijo transverso...
Estamos nos preparando para o vestibular, mas a mim mais interessa é fazer o cursinho com ele. Conheci Rodrigo no ensino médio e ele nunca percebeu nada além de minha amizade. Certa vez, numa olhada diferente durante uma piada qualquer, achei que ele pudesse estar dando algum sinal para mim, mas nada. Naquela vez, cheguei até a oferecer um baseado, para ver se ele se soltava. Ele nunca falou tanto em mulher como naquele dia e deduzi que era uma esperança vã. Eu teria que contentar-me com os feromônios que ele dirigia a elas, não a mim. Emprestei uns livros do Caio Fernando Abreu e acho que ele devolveu sem ler.
Ficamos ali sentados, rindo de tudo e falando bobagens. Mesmo o diretor da escola, quando nos olha com reprovação passa a ser motivo de nossas risadas. Porém, ele não me engana: aquela solidão e olhar perdido sempre acham os meus. Ele é gay também, mas nunca sairá do armário. Ele é o motivo que eu tenho para abrir-me, mostrar-me. Mas não agora, não estou pronto, além do quê provavelmente isso me afastaria de Rodrigo.
Minha vó chegando... Acho muito bom ter uma vó ativa, que encontra suas amigas. Não precisava ser no mesmo shopping que eu, mas... É aqui que o Rodrigo gosta de vir... A vó Eulália é uma artista. Minha mãe diz que ela é uma artista frustrada, porque meu vô não a deixou trabalhar no teatro, onde ele a conheceu, mas pensando bem ela não parece tão infeliz assim. A não ser hoje, que está apagada, sem a luz que normalmente irradia. Vou falar com ela, perguntar o que aconteceu. O Rodrigo acha engraçado eu conversar com ela no shopping. Ele não a conhece como eu. Ele não sentou no seu colo, não pintou com vovó, não vestiu peruca para brincar de teatrinho como fazemos. Adoro aquela velha!
Opa! O Rodrigo foi olhar para umas meninas e acabou virando refrigerante na minha perna. Vou ter que ir ao banheiro dar um jeito nisso, enquanto a faxineira limpa embaixo da mesa. Rodrigo ainda me segura no braço e paro sentindo o calor de sua mão. Ele me mostra aquela morena que costuma vir aqui, sempre bem vestida. Parece mulher de programa. Na verdade, eu gostaria muito de ter sido tudo diferente comigo. De transar com mulher, de desejá-las, mas... Não é assim... Tem gente ainda que acha isso uma opção. Quem escolheria ser diferente da maioria, que homem teria escolhido desejar outro homem? Essas perguntas carrego comigo e espero amadurecer logo para ter as respostas. Aquele menininho ali com seu pai, provavelmente já sabe o que ele vai gostar. Eu era muito novo quando descobri que nunca amaria uma menina.

22 junho 2006

Atrás de seus olhos - Eulália

Eulália. Assim me chamo. Sou viúva há dez anos e minha diversão hoje em dia é estar com minhas amigas. Reunimo-nos no shopping center, tomamos um chá com torta uma vez por semana, geralmente em domingos. Ali, entre lembranças e sorrisos planejamos alguma ação social que nos mantém vivas, além de ajudar quem mais precisa.
Ali está meu neto, Diogo. Menino educadíssimo, que vi crescer sem pai e com minha filha se redobrando em carinhos. Diogo tem esse amigo, Rogério, Rodrigues, sei lá.. Não tenho certeza... Minha memória já não é mais a mesma. Ele sempre fala muito desse amigo. São inseparáveis. Amizades assim, são raras.
Eu e as meninas estávamos, na semana retrasada planejando um teatro na periferia, onde trabalharíamos com alguns jovens. Eu faria um papel de avó, obviamente, mas angariaríamos alguns trocados para comprar cadernos para as crianças. Porém, por uma fatalidade, a minha estimada Josefina faleceu subitamente e tivemos que cancelar. Hoje é a primeira vez que nos reunimos sem ela. A Antônia está inconsolável, mas na nossa idade essas perdas são freqüentes. Custa-nos acreditar que logo, logo todas nós iremos partir dessa vida. A cada amiga que morre, sem uma palavra nos entreolhamos para tentar imaginar quem será a próxima. Raramente acertamos.
Olha lá, o triste homem, do mesmo jeito carrancudo de sempre. Nunca vi esse coitado sorrir. Lembro dele menino do mesmo jeito, num canto qualquer da pracinha de brinquedos. Nasceu triste, vai morrer triste. O que será que se passa naquela cabeça? Sempre o cumprimento, pergunto do tempo e ele mal responde bom dia, boa tarde, boa noite. A única vez que trocou uma palavra comigo foi quando perguntei que filme estava passando e ele disse: “Tootsie”. Só isso: “Tootsie”. Embora tenha ficado em dúvida se era tosse ou o nome do filme, fui assistir. Gostei demais, principalmente porque tenho uma artista reservada no fundo de minha alma sempre pronta para subir num palco.
É bom ver famílias nesse lugar. Crianças com seus pais, casais, moças bonitas. Aquela mulher de vermelho deve ser artista. Ah, como eu gostaria de estar em seu lugar. Jovem, bonita, sorridente, com corpo esguio! E como se veste bem, parece uma atriz. Linda e simpática com todos.
Apesar de o dia ser triste para mim e para minhas amigas, não consigo ser outra pessoa. Sou assim, de bem com a vida e vejo em todos neste mundo pessoas boas e felizes, mesmo o coitado... acho que se chama Robin, Batman... sei lá... bem, até ele deve ter seus prazeres. Do que será que ele gosta?
A menina da faxina está demorando em limpar a mesa. Lá está ela, limpando refrigerante na mesa do Rodrigo. Vou acenar para ela.
Que menino bonito aquele ali, bem arrumado, sorrindo com seu pai. Gostaria de saber das coisas que ele tem para contar. Faz tempo que não tenho crianças por perto e disso sinto falta. O tempo tem sido generoso comigo, mas falta crianças. Acho que sou uma criança no corpo de uma velha. Nem tão velha, nem tão velha...

19 junho 2006

Atrás de seus olhos - Robinson

Meu nome é Robinson, professor Robinson. Sou diretor de um cursinho pres vestibular. Tentei de todo jeito ingressar numa universidade como professor, mas o tempo foi passando e me acomodei. Talvez por ter essas dúvidas dentro de mim, esse medo de enfrentar as coisas que escondo com um ar de austeridade. Antes de vir para cá, passei no supermercado e comprei uma corda. Vou me matar quando chegar em casa.
Foi aqui que troquei a razão pelo instinto. Há cinco meses atrás encontrei um garoto que me aceitou como eu sou. Comprei presentes, ganhei afeto, como nunca havia experimentado. Porém a mãe dele descobriu e o castelo desmanchou-se. Aqui nessa mesa, ela me atirou a jóia que havia dado a ele e me chamou de coisas horríveis, que sei que sou. Só não foi pior porque era uma pessoa da sociedade e não quis denunciar-me para não sujar o futuro do menino. Gosto de meninos, quanto mais novos melhor, e na tentativa de esquivar-me de meus impulsos fui cair na Internet, em salas que preferia nunca ter entrado, onde garotos me esperavam. Não sei que vida prefiro. Não sei porquê tenho medo de tudo, outras vezes não tenho medo de nada. Tenho medo quando não ter medo.
Aqueles meninos ali, são alunos na escola. O loiro tem olhos lindos e uma barba que já se apresenta bem definida, apesar de seus dezessete anos. Ele nunca deve ter imaginado o quanto ele me atrai, até porque nunca eu teria coragem de olhar mais um instante para ele do que ele próprio me olha. A velha senhora passou a pouco por mim e me cumprimentou. Acho que a conheço, talvez daqui mesmo, talvez não. Não me atenho muito às pessoas. Sempre preferi os livros, o cinema e as orquídeas que cultivo no terraço do prédio, mas acabei dando o passo adiante que a vida toda evitei.
A morena chegou. Todos olham para ela. Até eu gosto de olhar seu requebrado, seus olhares lascivos, seu jeito de fêmea no cio. Ela nem olha pra mim. Não devo atraí-la, ninguém se sente à vontade comigo. Fico só, deixo o tempo passar e enquanto isso espero a hora de chegar a noite a vagar a Internet em busca de um encontro virtual, com algum menino. Depois de ceder, não me perdôo, mas uma voz me chama. A minha grande luta é manter-me longe da ação. Por isso, suportei por tanto tempo a solidão.
O homem com o menino é o Anselmo. Não sei se ele lembra de mim. Fui professor dele e agora ele já é pai. Provavelmente vive só, porque sempre o vejo com o menino por aqui. Eu não conheci meu pai. Ele morreu muito cedo e minha mãe nunca superou a sua ausência. Criou-me com a distância que hoje tenho das pessoas. Bonitinho esse menino dele... Se parece com Anselmo quando menino que eu perseguia com os olhos pela calçada... poderia convida-lo para um sorvete e...
Se ele não aceitar o passeio, vou ao cinema. Hoje quero chegar cedo em casa. Não posso me atrasar para o meu fim.

16 junho 2006

Atrás de seus olhos - Aparecida

Aparecida era como eu me chamava. Agora sou Jeniffer. Com dois efes. Cresci na mesma favela que a coitada da Nádia, que trabalha aqui nesse shopping. Passa o dia limpando a sujeira dos grã-finos. Eu preferi outra vida. Ganho dinheiro e me divirto. Nem todo mundo nasce com esse dom, esse corpo que faz qualquer um estremecer.
Freqüento o shopping porque aqui sempre tem muita gente solitária, apesar da multidão que anda por aí. Foi-se o tempo em que se conseguiam clientes na rua. Está tudo muito perigoso e não estou a fim de ser assaltada ou forçada a fazer de graça o que faço por dinheiro.
Ali está aquele velho com cara de mal amado. É um tipo que poderia render alguns trocados, mas além de nem olhar pra mim tem um jeito estranho... Na rua a gente desenvolve uns instintos de preservação e sem dúvida ele não me interessa.
Os meninos são uns duros, nem pensar. Só mesmo depois de uma noite com quatro ou cinco programas eu sairia com garotos para me divertir. Eles são rapidinhos, mas tem um calor que me deixa louca. Um deles me olha, quase babando, o outro nem me vê. Ahã, entendi... Ele não se interessa pela morena aqui e nem por outra qualquer. O negócio dele... Bem, talvez nem ele tenha descoberto ainda. Ih, o garoto virou refrigerante. Lá vai a trouxa da Nádia limpar o trabalho que eu mesma dei. Ele ficou todo atrapalhado quando eu passei e dei uma encarada nele.
O shopping está fraco hoje, domingo de sol. Cheio de velhos e crianças. Não vai render nada. Tem aquele outro com menino, com cara de casado. Deve ter a mulher em casa esperando. Bem gostoso. A Nádia não tira o olho dele. Parece puta. Era só o que me faltava, a mulatinha de cabelo ruim querer concorrer com a gostosa aqui. Só porque estudou um pouco mais que eu acha que pode...
Vou dar uma passada na frente do cinema. Hoje tem filme com sexo. Deve ter um monte de tarados querendo uma real. Além disso, se eu não der hoje, amanhã não pago o aluguel da peça onde moro. Claro que não posso levar ninguém lá, então preciso arrumar algum homem que tenha local ou pague um motel. Pra isso, tem que ter carro, porque ir a motel de ônibus não é com a Jeniffer com dois efes não.

12 junho 2006

Atrás de seus olhos - Anselmo

Costumo vir aqui almoçar uma vez por semana com meu menino, João Pedro. Desde a separação tem sido assim. Tento conversar, falar da escola, das coisas que ele gosta. Tomamos sorvete, vamos ao cinema, ao parque, ao zoológico, mas sou um pai pela metade. Menos que a metade. Tenho muito mais pai dentro de mim que ofereço ao meu filho. A separação foi difícil, dolorida, mas ela já não me amava mais e soube disso quando encontrou seu novo amor. Sobrei. Ainda durmo do mesmo lado da cama.
Faz um ano e ainda não estou confortável em amar de novo. Meu menino até me incentiva, me apresenta outras mães da escola que são separadas. Esse João Pedro... Nosso divórcio amadureceu demais nosso filho, mas isso não é de todo tão ruim.
Gosto de vir aqui com ele, gosto de vê-lo comer. Gosto de tomar sorvete com João Pedro. Ele suja o rosto, com tanto gosto que me delicia. Outro dia ele virou sorvete. A moça que trabalha na faxina, veio ajudar e foi muito simpática. Acho que se chama Neide... Neiva... Nádia. Nádia, isso. Não sou bom com nomes. Logo que ela veio, João Pedro me olhou com aquele olhar de cupido. Que coisa, esse menino! Ele sempre faz questão de cumprimentá-la. Tenho a nítida impressão que somos as únicas pessoas que freqüentam esse lugar que reparam em Nádia, essa mulata sorridente e prestativa. E bonita, nem sei se ela sabe disso...
Esses dois ali na outra mesa estão sempre rindo e brincando. Não devem ter preocupação nenhuma na sua adolescência. Saem com as meninas, riem, se divertem. Fazem um curso pré-vestibular onde o velho Robinson ainda trabalha. Desde meu tempo de estudante era ele que dirigia a escola e permanece no mesmo posto. Procuro sempre cumprimentá-lo no shopping, mas muitas vezes parece que ele nem me enxerga ou faz que não me vê. Coitado, deve ter uma vida vazia, pensando somente na escola e nos filmes que sempre está assistindo... Acho que ele me reconhece sim, pelo jeito que olha para o João Pedro.
Fico aqui com João Pedro reparando ao redor. Vejo aquelas senhoras de vez em quando. É bonito ver senhoras naquela idade rindo tanto, apesar de que hoje estão mais sérias. A Senhora Eulália Dupret é uma pessoa bem conhecida na cidade, não só pela obra assistencial, mas pelo sorriso cativante que empresta a todos. Onde passa deixa um pouco dele e assim, clareia os rostos mais sisudos. Ela me lembra aquelas artistas de cinema, que mesmo idosas não perdem o encanto. Aquele estudante ali deve ser bem próximo dela; não é a primeira vez que a vejo conversando com ele.
João Pedro me chama a atenção para a morena bem vestida que chegou. Até um pouco exagerada, apesar de que realça muito bem seu corpo nesse vestido vermelho. Provavelmente vá a uma festa. Tenho a impressão que já a vi por aqui mais vezes. Nádia a cumprimenta, mas parece que ela não repara. Pobre Nádia... Está sempre aqui e quase ninguém a vê. Há pouco limpava o chão e agora já está sorrindo. Ela é muito simpática. Será que ela sai tarde do trabalho? Vou conversar com ela. Ou, não... João Pedro me sorri como se lesse pensamentos... Vou até ela. Peço a João Pedro que me espere um minuto que já volto.

08 junho 2006

Atrás de seus olhos - Rodrigo

Meu nome é Rodrigo. Sou adolescente e adoro vir ao shopping. Sempre tem gente bonita por aqui e acontecem muitas coisas doidas. Gosto de vir com meu amigo Diogo porque a gente tem muito em comum. Sentamos sempre perto da entrada do estacionamento para poder ver todos que entram e saem daqui, principalmente as gatas.
Estudamos aqui perto num curso de pré-vestibular. Eu quero ser jornalista e o Diogo, arquiteto. Tem tudo a ver comigo e com ele, se bem que às vezes penso em fazer o vestibular para Direito. O bom de ser jovem é poder escolher. O lado ruim é o mesmo... Poder escolher qualquer coisa e depois arriscar a se arrepender. Nossos colegas vêm com a gente e ficamos curtindo as pessoas que aparecem por aqui. Tem de tudo num shopping center: pessoas que vêm sempre, tem garotas de bundas gostosas e muita paquera, além de uns chatos que não sei o que fazem aqui.
Naquela mesa ali está o Sr. Robinson. Ele é o diretor do curso. É um velho solitário e triste. Paga mal os professores e vive cobrando a mensalidade dos atrasados. Está sempre sozinho. Também pudera, quem poderia gostar um espécime desses? Acho até que ele não curte mulheres ou esqueceu de como elas são. Tampouco ele seria capaz de um gesto de carinho. Aquele homem nasceu para passar a vida inutilmente.
O Diogo me ofereceu um baseado outro dia e me passou por baixo da mesa aqui no shopping mesmo. Olhei para ele e fiquei admirado da audácia que ele mostrou. Depois saímos daqui e fumamos juntos. Ele ficou com uma cara estranha prá mim e eu quase vomitei de tontura que aquele troço meu deu. Gosto dele, porque apesar de tímido é um crânio. Sempre aprendo com ele. Ele me empresta alguns livros. Eu finjo que leio alguns e devolvo depois de uns dias. Não quero decepcionar meu amigão.
Aquela ali é a vó do Diogo. Ela sempre vem no shopping com as amigas viúvas. Ela já está bem velhinha, mas mora sozinha e ajuda no Lions Clube. O Diogo me disse que quando ela era mais nova trabalhou no cinema, mas o avô dele não a deixou continuar, quando casaram. Coisas daquela época. Ela tem um nome de velha, que não me lembro. Passa por aqui e sempre que pode o Diogo faz um elogio para ela. Ela acena e vai adiante para encontrar-se com suas duas velhas amigas. Hoje ela está mais séria, então o Diogo achou estranho e quer falar com ela. Eu disse para ela não pagar esse mico de falar com a velha em pleno shopping.
Virei a coca-cola, cadê a faxineira? Aqui!
Olha que legal esse pai com o menino! Tenho saudades de quando vinha aqui com meu pai, mas se eu falar isso prá turma vão cair na minha cabeça. O meu pai era bem legal comigo quando eu era garoto, depois ele foi se afastando de mim e pouco o vejo em casa ultimamente, até porque raramente estou lá.
Nossa, que mulherão! Mostro para o Diogo aquela bunda dois-prá-cá-dois-prá-lá. Ele confere, mas não dá muita bola. Esse vestido vermelho é um pedido de sexo. Coxas grossas, bunda firme, tesão! Parece um filme nacional antigo. Já transei uma vez, mas foi depois de uma festa na casa de um amigo, na dispensa da casa dele. Foi legal, mas esperava mais para a primeira vez. A gente nunca mais ficou, mas ela já ficou com a rapaziada da escola, menos com o Diogo. Estou ficando preocupado com meu amigo. Vou ter que arrumar uma mulher prá ele...

05 junho 2006

Atrás de seus olhos - Nádia

Sou a Nádia. Talvez eu conheça você, mas com certeza não lembrará de mim...
Trabalho nesse shopping há um ano e nove meses. Não foi muito fácil conseguir essa vaga, porque tinha muita gente querendo, mas como eu fiz o supletivo, consegui o diploma do ensino médio e me formei. Meu trabalho é muito importante, meu chefe disse. Tenho que manter tudo limpo na praça de alimentação. Se cair refrigerante, corro lá e limpo a mesa e o chão. Já sei distingüir se é diet ou não. Quando não é, o pano fica menos pegajoso. Já consegui até perceber que alguns que são diet ficam mais pegajosos que outros. Acho que não é tão diet assim. Bem, voltando ao meu trabalho. Eu também fico passando pano no chão. Sempre cai muita comida e eu tenho que recolher. É quando as pessoas me notam. Fico observando de longe elas me procurando até que me vêem em meu uniforme cinza e erguem a mão. Dou meu sorriso de estrela e entro em cena. Elas apontam para a comida como se fosse algo nojento. É até engraçado, porque há poucos minutos elas estavam comendo aquilo ali. Quando eu chego perto elas voltam aos seus afazeres, conversas e até discussões sem se importarem se eu escuto. É nesse momento que eu aprendo muitas coisas que vou passar a contar para vocês...
Aquele ali é o seu Robinson. Ele vem sempre em domingos à tarde, quartas e sextas-feiras. Domingos ele assiste o cinema. Primeiro compra os ingressos e, antes de entrar, come um pastel com água mineral sem gás. Sempre! Nas quartas e nas sextas ele traz uma pasta de um curso pré-vestibular. Acho que ele é professor, porque alguns adolescentes já comentaram que ele estava ali de novo e evitaram passar perto. Ele também faz que não os vê e assim eles se entendem. Nunca vi o seu Robinson acompanhado, mas sei que ele teve uma decepção muito grande há alguns meses. Uma mulher veio com um pacote de presente, atirou nele e saiu chorando. Eu peguei aquele embrulho que estava no chão e tentei devolver, mas ele já havia saído. Era uma corrente dourada e tentei devolver outro dia. Ele disse que não era dele. Não insisti e fiquei para mim. Ali que eu soube o nome dele, no cartão: "Te quero. Robinson".
Esses dois rapazes, ali adiante conversando, são gays. Eles disfarçam um pouco, quando tem mais gente com eles, ficam observando as garotas e contando histórias para elas. Um dia eu estava recolhendo um talher no chão e percebi que eles estavam de mãos dadas sob a mesa. Até achei bonitinho. Eles estavam se olhando e disfarçaram quando outro rapaz chegou. Um se chama Rodrigo e o outro Diogo. Eles têm muitos amigos e usam um penteado muito bem cuidado, com umas mechas loiras, os dois. O Diogo usa uma suíça mais pronunciada. As garotas vivem sempre olhando para eles com caras de apaixonadas. Mal elas sabem o jeito que eles amam. Devem ser alunos do seu Robinson, porque sempre desviam dele. Quando eles estão sós, conversam sobre filmes, livros e segredam coisas que não consigo ouvir, mas deve ser alguma coisa da intimidade deles porque de longe vejo os olhos brilharem.
A dona Eulália chegou. Estranho ela aqui essa hora. Ela sempre vem em sábados entre as duas e às quatro da tarde para conversar com suas amigas, tomar chá e comer um fatia de torta de limão. Elas são pessoas muito distintas. Elas ajudam os pobres através de um clube que elas freqüentam. Eu também sou uma pessoa pobre, mas ela nunca me cumprimenta. O que estará ela fazendo aqui hoje? A Dona Eulália em domingos é coisa muito rara. Ela cumprimentou o seu Robinson e seguiu adiante. Ela passou perto dos rapazes e eles comentaram alguma coisa sobre o vestido dela. Ela deve ter ouvido, porque acenou para eles. Realmente é coisa muito bonita, um tecido fino, chumbo, quase preto, combinando com a bolsa e os sapatos. Ela vai sentar-se na mesma mesa de sempre. Será que ela errou o dia? Difícil, pois foi ontem e ela esteve aqui. Olha lá, a dona Antônia também esta chegando. Deve ser algum assunto extraordinário. A Dona Antônia parece estar chorando. Faltou só a dona Francisca para o pequeno grupo estar completo. Queria levar um lenço para ela, mas ela nem me notaria por perto. Primeiro tenho que limpar o refrigerante que os dois amiguinhos viraram.
Lá vem da Aparecida, mulata bonita de cabelo bom. Fomos colegas de aula no primário. Ela nem me reconheceu ou fez que não. Ela tinha uma implicância comigo porque meu cabelo era ruim e o dela não. Ela deve trabalhar em algum lugar muito fino, porque usa umas roupas muito bonitas, até um pouco exageradas. O Rodrigo e o Diogo acompanham com os olhos. O Seu Robinson não vira o rosto, mas seus olhos seguem o requebrado da Aparecida quando ela segue seu caminho. Ela passa pela mesa das senhoras que estão de olhos vermelhos e tristes, mas por uma fração de segundo erguem a cabeça para vê-la passar. Não gosto quando ela vem aqui, porque sempre me dá trabalho. Ou é uma cerveja ou um prato de batatas fritas ou qualquer coisa assim que se vão ao chão na distração dos olhos atentos das pessoas que a seguem, homens e mulheres.
Mas o que vale a pena nesse trabalho é o seu Anselmo. Ele e seu menino, João Pedro, estão ali. Eles não vêm sempre aqui, duas ou três vezes por mês, mas fico ansiosa em vê-los. É que eles sempre me dão um sorriso, desde aquela vez em que o João Pedro virou um sorvete em suas calças e eu ajudei a limpá-lo. Ele deve ser separado, porque estão sempre os dois sozinhos. Eles riem muito enquanto o João Pedro conta as coisas da escola. Ele deve estar na primeira série. No dia dos pais eles almoçaram aqui e o menino deu um porta-retratos ao pai, desses feitos em escola. O seu Anselmo ficou emocionado e deu um beijo lindo na testa do filho. Confesso que deixei escapar uma lágrima. Eles sempre dão tchau para mim quando se vão. Eu fico de prontidão por ali para não perder o aceno que o garoto me faz com aquela mãozinha branquinha. Foi muito difícil descobrir o nome do pai, porque o menino naturalmente nunca lhe chamava pelo nome. Foi num dia que ele atendeu o celular perto de mim e percebi aquela voz encorpada atendendo ao telefone com seu próprio nome, ao invés de dizer alô. Cada idéia...
Ai... acho que ele está vindo até mim...